quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

ruminessência colaborativa

da série dos cardápios
"Restaurante Farinata tradição desde 1972, diariamente percebe aumentar sua satisfeita clientela, graças aos preços acessíveis e qualidade do cardápio. Atualmente, não é fácil encontrar uma refeição, sem abalar os bolsos do gourmet. Nesta casa realmente os preços não tem concorrência. Ficamos contentes com sua presença, obrigado."

carta ao prefeito, 2

excelentíssimo...
desejava eu uma vida mínima; desejava eu encontrar em mim as mais diversas cidades, suas fontes suspensas, seus corredores com sonhos ou fantasmas, seus segredos submersos, gigantes e minguantes, chãos de areia, céus de vidro, torres, lupanares. Desejava eu sobretudo a alegria das coisas mais sem importância. Desejava eu a miudeza. As mulheres, no entanto, são fazedoras de labirintos, e perdem a todo momento a bússola e o fio, tecem e retecem o pano cada vez numa cor e num ponto diferente, lembram mas esquecem a guia. Predestinam, mas não sabem quando.
Esperam, mas não sabem o que. Sofrem, mas não sabem onde. Daí e então, tudo impossivelmente. Por isso, repito (temendo ser enfadonha), única coisa que vale a pena são os atos de amor: felicidade do encontro, grandeza do diverso, infinitudes. Por favor, partilhe.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

partida

Ela quer ir embora de si mesma.
Na mala levaria as mãos, o sorriso e os olhos, e nenhuma, nenhuma palavra. Deixaria todas em feia desordem, todos os adjetivos e advérbios, suas esmeradas subordinadas, esqueceria desarrumados os verbos, todos os nomes, sobretudo os comuns e os abstratos, talvez guardasse em caixa bonita apenas alguns próprios. Abandonaria as preposições, as conjunções, os apostos, espalharia no chão todas as concordâncias e quaisquer flexões. Largaria aos pedaços a mordaça do seu discurso, esse que fecha a boca do seu coração vermelho e abre a garganta empestiada-podre, lotada de frases antes empunhadas com orgulho: o medo do desejo, a tormenta da espera, a generosidade do amor, a beleza do diverso, o pavor da solidão, a memória do corpo, a renúncia das escolhas, o pressentimento da brevidade.
Muda, triste e talvez moribunda, inventaria então uma nova ordem, inconteste e nua, no avesso da predicação: plenavras, únicas, solitárias, completas.
Como uma coisa, um mineral.
Talvez hoje ela queira morrer, porque aquela escolha está doendo demais.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

ridiculinha, 7

felicidade repentina:
no meio do mundo, redemoinho
no meio do peito, alegria gentil, florim
.

entre parêntesis, 2

(tem dias que não amanhecem, a despeito de qualquer coisa: do sorriso da Lulu, dos olhos verdes de imensidão do João, do sol do lado de fora da janela, da brisa que refresca, do olhar que me atenta; há dias que simplesmente não nascem aqui. Não sei se é a tal lamotrigina correndo no meu sangue, não sei se a volta da semana de folia, não sei se a regra, não sei. Talvez um pouco disso tudo mas sobretudo minha incompetência pra vida, não fui preparada pra essa solidão das escolhas, pra essa maturidade das idéias, sou confusão de pressa e inércia; não fui feita das certezas mas sim das duvidezas. Hoje vou botar as pétalas debaixo do vestido, prece silenciosa e triste, que perfumem minh'alma, iluminem. Ah meu Deus, se eu soubesse dançar...)

domingo, 25 de fevereiro de 2007

ridiculinha, 6

pressentimentos, presságios, pavor:
medo de perder aquilo que não é meu,
pois que conheço muito bem a minha condenação.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

carta ridícula X

Vai chegar o tempo em que não haverá palavra oblíqua. Vai chegar o tempo em que os olhos conhecerão, ainda que abertos, ainda que os mesmos, todos os caminhos do corpo, e a alma em festa vai estar do lado de fora da casa, sem espera, sem dúvida, sem medo. Vai chegar o tempo em que a luz das manhãs vai iluminar todas as janelas e as portas permanecerão abertas para que possamos sair quando houver delicadeza, e estarão fechadas quando for preciso ficar por causa da fúria ou da beleza. Vai haver o tempo de pouca saudade, permeada e breve, só nas frestas do dia, e então será o tempo de amores frescos e tantos em noites de lua ou de chuva. Vai chegar, sim, o tempo em que não será preciso partir.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

da apropriação

(do mesmo jeito que não sei contar histórias, não sei fazer os versinhos bonitos da Anita, e menos ainda seus desenhos infinitos; mas vai assim mesmo meu agradecimento, floreadinho ridículo, como consigo fazer:)
Sim, querida Anita, essa é a mulher que queria ser e que pretendo ser. Dou graças às curvas serpentinas, ao cair sinuoso dos confetes coloridos e às confusões carnavalescas e feminis. Aprendi a ser doentemente favorável à educação pelo gênero: homem é homem, mulher é mulher, Deus foi muito generoso conosco quando inventou tudo isso. Talvez as mocinhas feministas de plantão olhem pra mim com raiva intestina - fodam-se, não nego mais a minha histeria, rezo apenas pra que ela não atrapalhe demais a vida dos meus entornos, nem feche as minhas janelas - os olhos que choram demais enxergam de menos, diz minha mãe. Sim, o torto tem sua razão de ser: tem sua beleza, sua formosura, sua dor, sua instantaneidade, sua urgência: coisas que nós, parideiras, conhecemos de muito perto.

pós-carnavalesca

... e como tudo que é bom dura pouco, volto pra terrinha antes do previsto a chamado do superior. E eu que quase já estava sotaqueando, acostumando meus pés às havaianas com minhas perninhas sempre de fora, hoje acordei já nos saltos, da rodoviária ao centro da cidade, calor, trânsito, confusão.
O pior é que eu gosto demais disso daqui, vai entender.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

carnavalesca, 3

No subúrbio é que o Rio de Janeiro é mais: as mulheres arrumam os cabelos e levam as cadeiras de praia de casa pro meio da rua, no dia em que a rua não é pros ônibus, mas pro churrasquinho com cerveja em garrafa e copo de plástico, a dois e cinquenta, com suas crianças cheirosíssimas, com roupa de domingo (embora seja terça-feira gorda). O vendedor de cerveja também leva sua cadeira de plástico, e a mãe, a tia, o sobrinho pequeno e a filha que adolesce preta e linda, barriga e braços de fora, reluzente. Mas o que explode mesmo são os meninos: pretos, tão pretos que ardem, bonitos, fortes; as mãos com intimidade na baqueta e no couro, sorriso de muitos dentes, olhos firmes no mestre que comanda a batucada com as mãos, o apito e os olhos de quem sabe que a história ali é muito outra; ali, em Vila Isabel, embaixo do morro do Macaco, não sinto o cheiro de sundown da zona sul. Ali, meu vestido branco é invadido por uma misturada. Tristeza porque não vou fazer nunca parte deste lugar. E alegria, aqui a poesia é feita com o tempo, e meu corpo é capaz de sentir: pulsante, vivo, tomado, me leva. Valei-me, que eu ainda sei chorar.

carnavalesca, 2

Muita organização no carnaval: na entrada do banheiro, a moça determinada distribui pedacinhos minúsculos de papel higiênico enquanto orienta, efusiva: estamos em contenção de água, por favor só puxar a descarga se for número dois.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

carnavalesca

O Rio de Janeiro, além de ser a cidade mais linda do mundo (como diz meu amigo Mauro, primeira sem segundo lugar), tem ainda uma capacidade meio mística de fazer tudo mais bonito: os velhinhos sentadinhos assisitindo o carnaval na Cinelândia, a menina quase sem roupa vendendo cerveja na Rio Branco, o garoto fantasiado a caminho da avenida, eu no meu vestidinho preto, as luzes nas esquinas da cidade velha, o gradil decô na entrada do edifício que olha pra praia, os azulejos no alpendre do consulado português, o canteiro triangular no aterro. Aqui, as bocas pedem o vermelho, os pés desejam os saltos altos, as pernas encurtam as saias, o corpo quer respirar mais, e os mesmos olhos que vão perseguindo as bundas pelas ruas são aqueles que encharcam meu peito de tanta beleza, botam purpurina nas minhas pálpebras, soltam meus quadriz na calçada, enchem de confete e serpentina o meio do dia, num domingo universal, ali, na praça XV, cantando sem vergonha nenhuma: não me leve a mal, hoje é carnaval.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

pré-carnavalesca

Rezende, Shopping Graal, o relógio digital cafona marca 2:17 da madrugada do dia 17/2/2007, o ônibus 1001 parado na plataforma 17, uns 200 outros estacionados, e a voz no auto-falante grita:

- quem encontrou um óculos favor entregar na recepção.

só o semiótico pra pedir uma coisa dessas...

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

fantasia

... e entrego então a pena e o corpo ao descaminho.
Vamos, vamos nos perder, como faziam os padres, as putas, as beatas, os senhores e os serviçais, invertidos, desnudados, unidos pela boca e pelo sexo, destituídos de nome e palavra ordenada, os pés longe, muito longe do chão.
Vamos, vamos cantar e beber até cair, até o mundo ficar mesmo como ele é, lindo de morrer.
Vamos, vamos pra rua, que a carne deseja, o espírito precisa, o amanhã merece.
E sobretudo vamos, vamos muito, porque os grandes foliões são os tristes: daí então que estaremos, ainda que à distância, de mãos dadas.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

carta ao prefeito

Excelentíssimo Senhor Prefeito de Bloganvile,
esses tempos andam superlativos: ontem antes de dormir pensei, preciso escrever uma carta pro prefeito... mas daí que hoje ao amanhecer recebi uma missiva da minha mãe (em resposta à postagem infantil de ontem) que me desatinou, e a pena ficou seca, a contrário dos meus olhos grandes e chuvosos. Enfim, feito o registro do fato esdrúxulo, termina o preâmbulo.
Tentando ser breve, esforço quase sempre em vão, digo ao senhor que esse negócio aqui deixa a gente mesmo vulnerável, e o risco tem lá sua beleza e sua tristeza, não é? E não é à toa que o meu cantinho se quer ridículo, na tentativa de já me absolver dele (o risco), cartas que já pedem desculpas no cabeçalho.
O que não se pode esquecer, acho, é que há sempre duas alternativas nessa vida, numa aritmética tão simples quanto imensa: ou escolhemos viver, ou escolhemos morrer. Mesmo eu, que tento desesperadamente fugir do meu cartesianismo riobaldiano ("quero o preto longe do branco, o feio apartado do bonito, cada coisa em seu lugar") pra cair na imensidão feminina das coisas que são e não são ao mesmo tempo, tenho de dizer isso: ou queremos viver, ou queremos morrer. Simples assim. Escolher morrer é mais fácil, mais indolor e mais cinzento, e há quem acredite ser melhor - meus respeitos, mas não, obrigada. A outra possibilidade tem sua formosura e sua dor, coloridas, molhadas e sinuosas. E tudo ainda mais perturbador no mundo misturado que é esse nosso, de meninas-putas com bonecas na mão, homens que não sabem mais entregar flores, mulheres que não sabem mais recebê-las, gente que quer viver tudo mas não quer o outro por perto de verdade de jeito nenhum, um bando de pessoas indistintas, infelizes, perdidas, sozinhas, num enorme desamor violento.
Viver é muito perigoso.
Escrever também.
Mas estamos juntos. E estamos pra isso: a casa é vossa, sinta-se à vontade, o café está sempre quente assim como o abraço, gente por perto faz a gente mais e melhor, bonitamente.
E se reclamar da minha geladeira eu te ponho porta-pra-fora, certo?

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

pequena

Pegou um lápis laranja e desenhou um rosto redondo, colocou um nariz. Tomou o marrom e fez os olhos, o cabelo comprido. Com o rosa, fez a boca, bem pintada, e o vestido, longo, uma bata. Com o cinza, fez a coroa da princesa e seus sapatinhos altos, que apareciam pequenos pela barra do vestido.
Era uma princesa gorda? Não, estava grávida. E era linda e feliz. Fez um coração bem vermelho e escreveu o nome da mãe que ela tanto amava. Dobrou o papel, pontinha com pontinha, bem certinho, passou o dedinho pequeno na dobra até ficar bem dobrado. E deixou na cômoda alta do quarto da mãe e saiu.
Foi quando viu sua irmã, linda e alta, penteando o cabelo liso, que era parecido com o seu, que ia crescer e ficar daquele tamanhão, para poder escovar, fazer trancinhas, prender de lado, fazer coque. E ia crescer daquele tamanho, e ficar bonita, colocar sapato de salto, vestido, batom.
E agora ela cresceu, mas ainda é tão pequena quanto antes. E continua tendo pressa de crescer, querer ser princesa logo, parar de se preparar, fazer.
(escrito em 1990; 17 anos parada, pequena, e no mesmo lugar)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

intimidade, 2

a pior paciência é não saber o que esperar.

intimidade

O pecado vira festa em minhas mãos porque assim deseja meu discurso; meu discurso saberia devorar até o medo, aquele maiúsculo, pra recompor meus dias em amanheceres mais bonitos (a beleza, a beleza), mas meu futuro chega invariável e sempre atrasado, perde a melhor parte. Então a festa acaba cedo como houvesse um zelador, com olhos de ouvir e ouvidos de ver, sabedor de todos os passos de todos ao recolher o lixo depositado às terças, quintas e sábados nos grandes baldes negros na curva da escadaria nos entre-andares: ele não quer bagunça. Talvez por isso a brevidade. E esse choro sem remédio, sem destino e sem solução.
(aos desavisados como eu, isso foi outra carta ridícula, circular, com remetente e destinatário coincidentes)

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

afeto no varejo

Luiza chega ao quarto:
- mamãe, quero comer uma palavra.
- filha, palavra a gente come com os olhos.
Luiza aproxima os seus (jaboticabas) pertinho da página, e flin-flin, pisca-pisca, como asas de beija-flor.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

ridiculinha, 4

incompetência:
galo, galinha e pintos na avenida são joão.
queria contar uma história mas a minha pena só sabe parir cartas de amor.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

nome

... e eu, que fui forjada no afeto, conheço a ausência e o silêncio, mas tenho por medo não a morte mas a solidão, aquela ali, que me espreita prudente e risonha, indistinta, nas luzes da cidade; e eu, que fui feita não de pedra mas de água, não fui preparada pro tempo, apesar da minha condenação vestida bonita e enfeitada de brevidades; e eu, que padeço do amor na sua delícia e na sua rudeza, sei do abandono e da saudade - contudo e tanto, não tenho língua pra pronunciar o nome do adeus.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

coleção

no joelho direito a topada na quina do rodapé;
no esquerdo a queda de bicicleta no quintal da escola;
no pescoço o catéter-jugular;
no baixo-ventre o nascimento do filho;
no meio do peito a falta:
pra ler com as mãos.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

das belezas

E eu, que fui forjada no afeto, aceito aos poucos as belezas que se me apresentam simples como um sonho bom: o reencontro com as pessoas e com as palavras (sempre e tanto na mesma medida), a descoberta da solidão no meio do mundo, a certeza de que o que importa mesmo são os atos de amor, no seu diverso-variado, roseano: viver requer coragem, disse o homem. E vigilância, aprendo eu.
Felicidade mesmo é estar a serviço, ali, no miúdo: carinho de mão no rosto, comida com sorriso e mesa posta, lençóis alisados pra dormir no fresco, flores tiradas do jardim em surpresa, mãos lavadas na concha de outras mãos, janelas abertas ao amanhecer, gentileza do corpo e da alma.
E isso, amor e gentileza (pedindo bênçãos ao meu pai-cerne e à minha mãe-correnteza), graças a Deus, faz parte da minha formatura.

sábado, 3 de fevereiro de 2007

noite

"O mecanismo de ação preciso, através do qual a Lamotrigina exerce sua ação anticonvulsivante, ainda não é conhecido. Um mecanismo de ação proposto envolve um efeito nos canais de sódio. Estudos farmacológicos in vitro sugerem que a Lamotrigina inibe os canais de sódio sensíveis à diferença de potencial, estabilizando as membranas neuronais e conseqüentemente modulando a transmissão pré-sináptica, por diminuir a liberação de aminoácidos excitatórios, especialmente o glutamato, que desempenha um papel fundamental no desencadeamento das crises epilépticas."
Tinha medo de não dormir.
Agora tenho medo de nunca mais aprender a dançar.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

feitio

Não mais suplico. Tampouco paraliso. Há muito não tenho tempo para esses luxos, pelas realidades mais que imperativas, de obediência inquestionada e amorosa. Angústias, as conheço com muita intimidade, e faço delas meu mote e meu pasto, alimento da garganta e dos pés. Meu corpo, aliás, sabe muito bem de seu desenho no mundo, e encontra em si o espelho das memórias - peito recolhido, ombros carregados; mas conhece, porque já viveu, suas possibilidades e seu movimento, e vai endireitando-se tímido mas corajoso, pernas firmes ao chão, umbigo que carrega seu peso, ancas que desejam, ar ao fundo, as costas como janelas de abrir, braços libertos, olhar vigilante e úmido.

Pois que acredito nos afetos, e é por eles que me achego, às vezes doce, às vezes aflita, mas sempre inteira, e não quero muito não, muito menos a condescendência falastrã - a falta não me preenche, apenas se apresenta, simples, assim como o silêncio, aqui; da dor não fujo mais, também é minha conhecida, no seu variado.

E não é à toa que cantei chorando "e logo eu que procuro infinitas formas de amar e viver/ posso apenas declarar que o medo é que faz a nossa dor crescer".
Meu coração é bruto, cavalo sem domar, e dou graças.