segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

da memória, número dois

no jantar veio a proposta, e tomada de uma alegria súbita, sem pensar muito pra ver se espantava a hora da abóbora, discutimos os quandos e os comos. liguei pra amiga. contei pro garçom. avisei a mãe e a irmã.
inventei que podia ser feliz.
visitamos uns apartamentos, em desajeito.
não tinha poesia.
não tinha beleza.
apenas a vontade incontrolável de poder ter uma ou outra certeza apesar de todos os apesares que fingi não terem muita importância, aqueles que prometi de joelhos na solidão do último cigarro que não estariam ali se chegasse o tempo de algum conforto.
o filho teve olhos imensos, e sonhou. a filha, como sempre, sabia de tudo.
a meia noite chegou dois meses depois, era meu aniversário, e fazia um calor despropositado pra uma tarde de agosto.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

da memória, número um

visitamos meia dúzia de casas que eu sempre quis uma casa, e havia aquela com portões de chapa metálica pintada de amarelo, um sobradinho, no térreo a primeira porta que dava pra cozinha ensolarada acompanhada de um terreiro de cimento, e preocuparam-me os azulejos todos esburacados por armários que lá estiveram, eu bem quereria as paredes limpas e um guarda-pratos como o da minha avó. a porta da sala era mais pra adiante no corredor lateral que ia até o fundo, e abria para tacos grandes cobrindo o chão da sala retangular, a mesa de jantar não cabia, logo vi, mas janelas no fundo tinham vista voadora, quase generosa, e fingi que não pecebia. a escada estreita no lado oposto levava ao mezanino superior com três quartos, um deles tão pequeno que nada servia e eram dois quartos e meio na verdade, quase uma enganação. na parte mais de baixo ao fundo era o quintal e a lavanderia sob a laje da sala, que aproveitava a inclinação do terreno, as crianças até poderiam brincar, quem sabe um cachorro e um pouco de grama, uma horta, uma piscina de plástico, uma sombra de árvore.
inventei que podia ser feliz.
e apesar do preço impossível, do financiamento inexistente, da ajuda familiar fictícia, do bom futuro falso, desatei a embalar as coisas como houvesse data pra mudança, arrastei móveis, mal cobri o chão de plástico, desparafusei os espelhos dos interruptores, e providenciei nas paredes uma pintura ruim pra melhorar o preço da venda, nas portas, rodapés, batentes e janelas uma cor bege e estranha, sobra de tinta esmalte brilhante de não sei onde.
o filho tinha olhos imensos, e sonhou. a filha morava aqui dentro de mim, e como sempre sabia de tudo.
os espelhos foram recolocados meses depois, com olhos inchados e sangue nas mãos.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

volta

quando tudo parece desajustado - o beijo que te dou atrapalha a vista, meu brinco arranha teu rosto, meus pés machucam tua perna, meus dentes ardem a tua pele, a vizinha ronda nossa porta, a memória assombra nossas noites, o tormento ocupa meus olhos - volto.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

um ano

há um ano postava meu último texto.
um ano sem escrever.
às vezes acho que sequei.
às vezes acho que estive tão feliz que não havia porquê.
às vezes acho que envelheci.
ainda choro por quase as mesmas coisas.
às vezes acho que o amor movimenta todas as montanhas, universos, mãos, passos, em gestos tão miúdos ou tão gigantescos que não cabem na minha retina.
às vezes acho que dei errado.
às vezes sinto alegrias impossíveis.
às vezes tenho muito medo.