sábado, 25 de janeiro de 2020

cartografia 21

Certamente há um lugar neste corpo onde repousam as palavras soterradas pelas violências que nos recusamos a nomear ou sequer sentir. Palavras abortadas antes de nascer. Palavras desditas. Palavras desimaginadas.

Mas a barbárie se encarrega de exumá-las de dentro dos nossos infernos. Porque o medo como forma de governo tem como artifícios ressuscitar nossas desgraças particulares ao despejar sobre nós a potência paralisante da perversidade institucionalizada, e ao mesmo tempo desviar e esvaziar a nossa libido, que tá ocupada com outra coisa. De modo que vão surgindo pequenas erupções vulcânicas – espinhas, vômitos, diarreias – trazendo o pus de nossas memórias de volta pra superfície enquanto os paus vão amolecendo e as bucetas ressecando. Um a um, e todos juntos, um exército de celibatários psicopatas semi-vivos de olhos vidrados e pele purulenta.

O ano se desabrocha como uma possibilidade suficiente, os encontros viçam, o rosal desejando uma formosura delicada e merecida, e isso enche o meu coração vermelho de alegria, mas eu não sei não ser esta artista que sou, uma mulher política, de modo que o horror cinza e anacrônico daquele vídeo desaba sobre meus olhos como uma tempestade de fumaça podre e eu sou somente a repulsa e o desespero de palavras que sangram como fetos roxos ao primeiro não-arfar. Sonho em vigília com discussões que nunca consegui ter enquanto ando sobre cadáveres na abertura de um espetáculo que não existiu, num mundo que não mais existirá. Acordo sem ter dormido com hematomas, dores musculares e um cansaço de quatrocentas e sessenta e seis encarnações.

Não que eu não soubesse que seria assim. Mas a constatação diária de que é pior, será ainda pior, e pode piorar mais, é que fode o peito.

(só hoje consegui escrever sobre aquele vídeo. Só hoje, dia em que a linda cidade feia aniversaria. Eu sou dela como tantxs outrxs que como eu fizeram do não pertencimento sua maior identidade: sou daqui, sou de ninguém, sou de qualquer lugar. Puta, nômade, atriz. São Paulo não é isso e é isso aí também.)

domingo, 5 de janeiro de 2020

cartografia 20 (ou do ano que começa)

A minha geração (ou a bolha da minha geração) quer aceitar envelhecer, então não pinta mais o cabelo, mostra o peito caído com certo orgulho, não esconde as gorduras dos braços e as celulites das bundas, entende que a beleza é variada e diversa, multiforme, que as cicatrizes do corpo são nossa história real e isso é realmente lindo. Sofremos dores individuais de um amadurecer mais ou menos consciente protegidas por um senso coletivo de positividade.

Mas eu desconfio que ideal romântico de morrer de peles rígidas, mente afiada, corpo potente, ágil e flexível ainda permanece e ninguém quer enfrentar a decrepitude real que inevitavelmente vai acontecer porque vamos morrer com mais de noventa anos.

É difícil escrever isso: eu vou me tornar uma velha caquética. Talvez mais tarde do que a minha avó e mais tarde ainda do que a mulher pobre e fodida que mora nas bordas da merda da minha civilidade, mas inexoravelmente eu vou me encontrar com essa imagem no espelho: uma velha.

Meus filhos vão querer o meu carinho quando meu corpo estiver molenga? Como vamos trepar quando todas as nossas peles estiverem caídas, as articulações duras? Haverá prazer possível num corpo tão usado? Quem vai querer me ver dançar? Quem vai querer me ouvir? Quem vai morar dentro dos meus ossos frágeis e das minhas vísceras lentas?

Talvez a chave seja criar rituais de solidão, ainda que compartilhada. Preparar-se pras mais variadas assincronias (do corpo com a mente, do outro consigo, de si com o mundo) de modo a reabitar o corpo de dentro pra fora, preenchendo o que era carne de sensações ou da memória delas – minhas preferidas são a alegria e a surpresa. E se manter ressoando mesmo que num contraponto infinito, lento mas presente. E assim, talvez, não enrijecer o suficiente pra construir seu próprio Narayama.

E talvez nada disso faça sentido porque tem o coiso daqui, o coiso estadunidense, e a gente pode morrer a qualquer momento de bala, cansaço, falta de saúde pública ou bomba atômica e então todas essas minhas angústias comezinhas que se fodam.