domingo, 5 de janeiro de 2020

cartografia 20 (ou do ano que começa)

A minha geração (ou a bolha da minha geração) quer aceitar envelhecer, então não pinta mais o cabelo, mostra o peito caído com certo orgulho, não esconde as gorduras dos braços e as celulites das bundas, entende que a beleza é variada e diversa, multiforme, que as cicatrizes do corpo são nossa história real e isso é realmente lindo. Sofremos dores individuais de um amadurecer mais ou menos consciente protegidas por um senso coletivo de positividade.

Mas eu desconfio que ideal romântico de morrer de peles rígidas, mente afiada, corpo potente, ágil e flexível ainda permanece e ninguém quer enfrentar a decrepitude real que inevitavelmente vai acontecer porque vamos morrer com mais de noventa anos.

É difícil escrever isso: eu vou me tornar uma velha caquética. Talvez mais tarde do que a minha avó e mais tarde ainda do que a mulher pobre e fodida que mora nas bordas da merda da minha civilidade, mas inexoravelmente eu vou me encontrar com essa imagem no espelho: uma velha.

Meus filhos vão querer o meu carinho quando meu corpo estiver molenga? Como vamos trepar quando todas as nossas peles estiverem caídas, as articulações duras? Haverá prazer possível num corpo tão usado? Quem vai querer me ver dançar? Quem vai querer me ouvir? Quem vai morar dentro dos meus ossos frágeis e das minhas vísceras lentas?

Talvez a chave seja criar rituais de solidão, ainda que compartilhada. Preparar-se pras mais variadas assincronias (do corpo com a mente, do outro consigo, de si com o mundo) de modo a reabitar o corpo de dentro pra fora, preenchendo o que era carne de sensações ou da memória delas – minhas preferidas são a alegria e a surpresa. E se manter ressoando mesmo que num contraponto infinito, lento mas presente. E assim, talvez, não enrijecer o suficiente pra construir seu próprio Narayama.

E talvez nada disso faça sentido porque tem o coiso daqui, o coiso estadunidense, e a gente pode morrer a qualquer momento de bala, cansaço, falta de saúde pública ou bomba atômica e então todas essas minhas angústias comezinhas que se fodam.

Um comentário:

Shineky Ouki disse...

Realmente, ótimo texto. Pensei no inicio que fosse um comentário ofensivo mas me enganei... Eu meio que não penso muito nesse assunto, pois para mim conseguir envelhecer é de certa forma um privilégio mesmo, como você disse. Mesmo para a velhice existem milhares de possibilidades, você poderia passar seus últimos anos sozinho e rico com mordomos limpando sua bunda, em um bom asilo, em um asilo normal, com seus filhos que tiveram que voltar para casa para cuidar de você, com alguma doença mental degenerativa que você adquiriu com o passar dos anos ou com a mais plena saúde física e mental... Vale ao destino escolher.