quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

na travessia, dia 2

governador valadares, mg - mantena, mg

quase três horas, 135 quilômetros, e no fim da tarde a terra boa nos recebeu azul, azul que ainda permanece acesso nos olhos do meu amor.

pedra. terra batida e poeira. asfalto ruim. casas com mulheres nas janelas, nos alpendres, nas calçadas. bares de homens inchados. calor.

depois de uma volta na cidade já irreconhecível, chegamos à casa da tia, um oásis de plantas, árvores, pássaros, madeira velha, panelas de ferro, bacias e toda sorte de coleções, enfeitadas com toalhinhas de crochê e com um vento que passeia só aqui.

chegamos.

aqui ficaremos até o corpo entender o calor e refazer as memórias mais profundas. aqui estamos pra presenciar e aprender sobre o amor, a doença, a cura, o tempo, a fartura, a miséria, o silêncio.

o último dente de leite da macaca caiu, e minha ensolarada dos dias desabrocha na flor mais formosa. os olhos de floresta do meu filho estão longe, mas ouço sua voz e sei que tudo está certo.

no último dia do ano não rezei porque minha certeza é tão vasta que tudo em mim é amor, oração e agradecimento.

"A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia."

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

na travessia, dia 1

mococa, sp - governador valadares, mg

(quando quis ler o grande sertão, tentei tantas vezes e não consegui, então um professor, davi, disse pra ler de uma só vez umas 50 páginas, sem parar, sem entender, sem dicionário, sem resistir. talvez tenha sido este o melhor conselho da minha vida. esta é a sétima vez que volto a ele, e cada vez dum jeito diferente, misturado com os todos cantos do meu peito sanguíneo: assim a viagem, uma talagada duma vez, pra despertar desafogada no meio do redemunho; assim a vida, vestida de carmim; assim o amor que está em meu nome)

777 quilômetros, 12 horas. carro gente caminhão feiúra estrada gente carro buraco gente miséria caminhão carro carro. o céu dum azul sólido. a terra aberta em feridas. o verde que não desiste. uns passarinhos amarelos lindos de pequenos, meu pai ia saber, certeza.

de repente, o trem de ferro que carrega ferro infinito, e então sei que cheguei às portas das gerais.

o corpo aos poucos cede ao calor que parece apertá-lo pra dentro de si, já não resiste mais, procura algum conforto numa memória que não sei. quase não venta. encurto as saias, tiro as mangas e aceito o úmido que escorre entre meus seios.

na cama dos outros, nossa pele arde, nomeia e lembra: rosal em botão.

"Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?"

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

nevo azul

no ano que você nasceu uma mãe de santo negra, pequena e muito sorridente jogou búzios e me disse que eu sou filha de oxum e oxossi, que sou oxum velha, velha, velha cantadora de histórias, e que carrego em mim o cerne espiritual da minha família, que eu não ia querer isso mas era assim que era, e contou mais uma porção de coisas lindas que eu esqueci.
meus olhos aguados cresceram um pouco mais naquele dia, assombrei.
tempo depois fiz uma guia amarela que não voltei pra rezar.

vieram os redemunhos todos, minha vida de roldão.
oito-infinito
.O amor O.

mãos pequenas e fortes.
traça linhas de destino sob a lógica dos deuses que desconheço ao tempo que repete as palavras róseas que sei de cor.
pés bailarinos.
tanta tristeza nos olhos verdes, tanta.

me deu gosto abissal ver vocês atracados; a memória dos corpos confundidos e dos cabelos enroscados nos meus dedos ainda umedece meus joelhos; nosso sábado maiúsculo me faz acreditar que este ano estranho errado torto tornou e entornou finalmente em formosura.