domingo, 28 de abril de 2019

cartografia 2

Meu corpo está a deriva, e desenha riscos disformes.
Rígido e frouxo, ele dói.
Constato, perturbada, que não sei onde está o centro, meu umbigo perdido pesa duas toneladas. Meus olhos, junto com ele, querem afundar definitivo no assoalho da sala ensolarada e quente, cheia de gente tão perto e tão longe. Ninguém me reconhece. Eu não me conheço.

Mas levanto o rosto, em resignação religiosa.
Não sinto prazer, nem alegria. Ainda. O que sinto é da ordem das certezas.
Tudo ao redor parece um grande, sorridente e ainda distante devir.
Meu corpo tem pressa e vergonha. Meu corpo dói.

Há uma beleza sofrida em abandonar-se ao ridículo.

cartografia ou um corpo que res/existe - abertura

Exu acertou o pássaro ontem com a pedra que lançou hoje
 e acertará, com a pedra que lançou ontem,
 o pássaro que ainda não voou


Começo aqui um registro cartográfico do meu corpo. 

Viagem anunciada: desconforto, desformatura, deslocamento.

Dançar nunca foi uma opção.
Dançar nem sequer foi um desejo.
Dançar sempre foi a saudade do que eu jamais fui.

Mas à semelhança dos meus partos - filhos, discos, espetáculos - meu corpo conhece a inércia e a iminência, e entre uma e outra, o vazio silencioso que antecede as importâncias. Feito de água, vento e palavra, a um só tempo continente e cachoeira.

Dançar é agora urgência. Ato político. Gravidez da voz que sempre tive e da que ainda terei. Procedimento e polinização.

Risco aqui a cartografia do meu corpo. Um corpo cruzado, atravessado e na travessia. Corpo-percurso, subversivo, resiliente, e que envelhece. Um corpo em busca do que já foi, e que quer lembrar o que será.

cartografia ou um corpo que res/existe - prelúdio

"... o projeto de normatização deste Brasil de horrores, para que seja bem sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. É o corpo, afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de forma mais contundente o projeto colonizador fundamentado na catequese, no trabalho forçado, na submissão ostensiva da mulher e na preparação dos homens para a virilidade expressa na cultura da curra: o corpo convertido, o corpo escravizado, o corpo feito objeto e o corpo como arma letal. Este Brasil é um país de corpos doentes, condicionados e educados para o horror como empreendimento.
(...)
É neste sentido que não acho que o Brasil deu errado. (...) O Brasil foi projetado pelos homens do poder para ser isso aí: excludente, racista, machista, homofóbico, concentrador de renda, inimigo da educação, violento, assassino de sua gente, intolerante, boçal, misógino, castrador, faminto e grosseiro. Somos isso tudo, não? Nosso problema não é ter dado errado. O Brasil como projeto, até agora, deu certo.
Eu não desisto. O trabalho é miúdo, constante, longo, de enfrentamento e aprendizado. A ideia de resistir não é mais suficiente. O papo é reexistir mesmo, com a paciência da mulher rendeira, a ginga do capoeira e a destreza de Ogunhê na forja das ferramentas: arado, lança, pilão e cimitarra.
(...)
A nossa chance é começar a dar errado, como indivíduos e coletividade, com a maior urgência. Essa é a tarefa/jangada do Dragão no mar de Aracati para os próximos dias, meses e anos. Embarquemos nela desde já, desafiando os ventos da tempestade."

Luiz Antonio Simas, 26 de outubro 2018