quinta-feira, 30 de abril de 2020

cartografia 30 (ou um ano)

As cartografias fazem aniversário.

Um ano de desnudamento poético encarnado: meu corpo, entranhas, reminiscências, vergonhas, projetos e medos devassados deliberadamente. Trinta autorretratos nua, imperfeita e sem pejo. Trinta tentativas de explicar e entender o que eu não sei. Trinta derivas. Trinta naufrágios. Trinta absolvições. Uma só travessia.

Em um ano:

eu não sei mais a diferença entre meu dentro e meu fora. Isso rege tudo o que vem adiante;

eu sinto muito mais: vísceras, articulações, pensamentos, espaços, camadas subterrâneas das peles, mucosas, músculos, mínimos movimentos, líquidos, luzes, ventos, lembranças, estruturas, raciocínios, vibrações, números e silêncios povoam meu corpo-mulher que cresceu exponencialmente;

uma nova palavra preferida: gesto;

a consciência é um caminho sem volta. Não é possível des-sentir, des-saber, des-memorar;

minha relação com o outro e com o mundo é essencialmente erótica: música, palavra, palco, plateia, desenho, poesia, amizade, amor, sexo, inteligência, discurso, comida, sono, ensino, aprendizagem, tudo em mim é desejo em sua plurissignificância magnífica: esperança, impureza, prazer, vontade, intenção, necessidade, requisição;

não há ação no mundo que não seja política. Uma vez que decido publicar, por consequência, tudo que é meu íntimo é também meu político (como lindamente me escreveu meu amor bárbaro). Afirmo, mais uma vez então, à guisa de estatuto: eu canto contra a morte;

não estamos mais diante da iminência da morte: estamos dentro dela. Leio de um amor distante que não podemos esquecer quem somos - brasileiros filhos da dor, fazedores da alegria, gente teimosa de afeto e reinvenção. Sim, sou, somos, e eu choro muito agora porque eu só sei viver e ser no fio infinito e generoso da beleza. Mas não acredito mais numa saída que não seja revolucionária, e portanto, violenta.

sábado, 25 de abril de 2020

cartografia 29

Há alguns dias observo um novo fenômeno: a hipersensorialidade das minhas mãos. Não é uma sensação incorpórea, ainda que extremamente energética; tão pouco é uma ampliação dos meus membros, como se se tornassem tentáculos maiores. Ou aquela vermelhidão-grito das minhas peles finas.

Antes, é uma acuidade cujo vetor radial aponta pra dentro, como se milagrosamente se multiplicassem os invisíveis receptores neuronais que se conectam a cada célula e se acomplam uns aos outros, e o conjunto deles aos feixes de transmissores mais robustos que, de mãos dadas, chegam à parte do meu cérebro que registra áspero, quente, macio, úmido. Sobretudo a percepção dos mínimos relevos, o encontro dos primeiros fios de cabelo à nuca, a linha da borda onde acaba o lábio inferior e começa o queixo, o buraquinho que adorna meu lóbulo pela frente e por trás, o desenho preciso e tridimensional da cicatriz da cesárea, a cordilheira das aréolas, as costura das peles de dentro com as de fora e sua cosmogonia.

De modo que as coisas mais ordinárias se tornaram vagarosas, como alisar a colcha sobre o sofá ou digitar as teclas do computador: me pego escorregando os dedos vagarosamente entre as teclas ou os bordados pra medir a exata distância do vão que os separa e me deixar invadir pelas cócegas que o salto provoca.

A lascívia superlativa de tocar seu corpo.

cartografia 28

Há poucos anos eu desenvolvi uma hipersensibilidade na pele, de modo que ao menor atrito ela se irrita, faz um vermelhão proeminente de mini bolinhas – às vezes juntas formando riscos, às vezes nuvens avulsas de constelação – que coçam por alguns minutos, esquentam e depois desaparecem devagarinho. Basta carregar a sacola de supermercado no antebraço; roçar a lombar na costura da calça ou na etiqueta mal cortada; ou mesmo apoiar a barriga na beirada da mesa áspera: a pele logo grita, reclama e configura suas ilustrações rubras e perecíveis.

No início, assustei-me e pensei em procurar um médico, um remédio. Com o tempo e a teimosia da reação, comecei a achar graça, colecionar desenhos, adivinhar as conjunções astronômicas de acordo com o peso do pacote ou a largura da alça.

Mas o que eu gosto mesmo é quando você acomoda a barba entre as minhas coxas que respondem, imediatamente, com milhões de estrelas sanguíneas.

Minha pele passou a denunciar em cores as minhas tangências.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

cartografia 27

Quando eu era jovem, bem jovem, eu ia ser atriz.
Cabelos longos, pernas, bunda e peitos duros, mãos as mesmas, olhos grandes. Um corpo à disposição e uma vida inteira pela frente.
Meu primeiro amor veio do colegial e eu o abandonei no dia dos namorados de um inverno ansiado de tardes de sexo fácil e incansável porque achei que estava predestinada ao meu professor de música que na verdade era a paixão da minha irmã. O professor tinha (ainda tem, porque está vivo) um nome de dois gêneros, como Leonor, e numa tarde sem mais nem menos declarou seu amor por mim. Eu aceitei. Em seis meses, trepamos uma vez e meia, e não por falta de oportunidade – ele pau duro, eu exuberância oferecida dos meus 18 anos. Mas não dava certo. Muitas madrugadas em silêncio e em vão, eu à serviço, ele sem o jeito, e não.
A culpa, claro, era minha. Que esse negócio de ser atriz é mais ou menos isso, a gente finge tanto ser o que não é que acaba nunca sendo o que é de verdade, ou coisa nenhuma qualquerzinha que seja. Então quem era eu se ele não conseguia ver quem eu era de verdade? Como ele haveria de amar essa obscura farsante impostora ardilosa falsa tratante que era eu, já que essa aqui, a exuberância oferecida dos meus 18 anos, não era eu de verdade?
Um dia ele foi assistir uma performance minha. Uma torre em espiral construída em tubo rohr na bienal de arte de 1991, infinitos varais que se cruzavam e panos imensos pendurados no vão central, três atrizes lavadeiras nas escadas, eu cantei com a bacia de alumínio entre as pernas molhadas que escapavam da saia imensa, eu chorei um filho morto. Não sei se aquilo era bonito ou bom, a gente era tão jovem, mas eu tava lá, valente, a exuberância oferecida dos meus 18 anos à disposição. Ele me disse que o tom da música caiu e que minha vida era igual àqueles varais, um emaranhado confuso sem fim.
O namoro acabou nas vésperas de Natal, sem despedida, sem discussão, morreu. Eu achei que ia morrer, mas não, eu não morri.

Hoje, 28 anos depois, meu corpo reclamou essa cicatriz. A sensação de pequenez e insuficiência. Uma desapropriação nas carnes. Os fios todos embaralhados, panos caídos no fosso. A água fria escorrendo entre as pernas firmes e a voz que perdeu o tom na exuberância oferecida dos meus 18 anos. O de verdade atormentando os ouvidos. A atriz que eu não fui.

Choro descontroladamente. A vida toma, imperativa, seus caminhos. As violências permanecem inscritas.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

cartografia 26

Tenho dormido mal - sonho em vigília por quase toda a noite e acordo ao meu menor movimento. Sinto calor e frio, não assenta o corpo que faz muitos barulhos e gestos involuntários. Acordo cansada quase sempre no mesmo horário, abro a janela, arrumo a cama, me visto. Quase nunca uso sutiã, bem como sapatos - alegrias. Tomamos café demoradamente juntos na mesa velha no quintal do apartamento e planejamos o dia, só de teimosia. O dia não rende, nem mesmo com muito menos trabalho do que antes do isolamento. Parece que as coisas aleatoriamente demandam um novo vagar e uma nova perspectiva: lavar a louça, ajeitar as almofadas no sofá, encher o filtro, descongelar a carne, picar as cebolas, ler as notícias, saber dos amigos, abrir as cortinas, sentir o vento frio no entardecer alaranjado de Iansã que vem rápido pra comover os olhos.

Arrebol, barras, crepúsculo, entardecer, escurão, lusco-fusco, noitinha, ocaso, poente, pôr, pôr do sol, ruiva, sobretarde, sol das almas, sol-pôr, sol-posto, sonoite - palavras pra colecionar.

É nessa hora que faço o ritual novo nascido na angústia do confinamento: no meu quarto, sozinha, espreguiço, alongo e mexo meu corpo como posso. Enraizo os pés no chão, serpenteio a espinha do cóccix até o pescoço com carinho, massageio a cabeça e os olhos na ponta da cervical, sinto o calor chegar, suspiro. Aqueço a pélvis, abro a base, faço 3 minutos de escalas espirais vibrando e inflando as bochechas, e então começo a cantar. Tem dia que é só um vagar perdido por lugares diferentes, tem dia que é organizado, intenso e claro, às vezes lembro uma canção velha num tom absurdo, outras me faço chorar muito escurecida... Eu digo há tempos que a consciência é um caminho sem volta, mas nunca, em 46 anos, 27 deles cantando, tinha tido essa sensação tão nítida no meu corpo: eu percebo movimentos, ventos e espaços nos escuros dentros de mim. Tem uma coisa muito importante e definitiva acontecendo aqui, ouro sobre azul.

Meu horizonte está maior e menor, os olhos enxergam mal de perto e cada vez pior de longe. O tempo tem outras leis que desconheço mas pressinto. A libido está fora de lugar.

Nada será como antes, amanhã.

Muitos planos à deriva: não consigo ler nem ser otimista; não tenho vontade de compor nem de escutar música; não elaborei projetos; não emagreci. Muitas dúvidas em curso: como vai ser cantar no depois? vou ter força pra me reinventar de novo? vou aprender a fazer pão direito? o que vai sobrar de nós? quantos vão morrer?

Três sensações impregnadas e imperativas: a espera (ou o desespero) da chegada do tsunami; a impotência diante da catástrofe; a raiva dos governos de morte que nos condenam à barbárie.