sexta-feira, 16 de agosto de 2019

cartografia 15

Tenho um parágrafo tatuado na minha retina. Como toda tatuagem (ou cicatriz, obra, amor) ele é marca de um tempo que se reapresenta, quando em vez, ora como susto, ora como alumbramento, às vezes cheiro, soco na cara. Ontem ele reapareceu também como tábua de salvação. Que eu ando mesmo é naufragada, sem carta marítima, bússola, água ou vela. Que apesar de todas as urgências físicas, econômicas, civis e emocionais, meu corpo parece preenchido de cimento e escombros, e se arrasta, esfarelento, por entre todas as indisciplinas que não me canso de colecionar. Que meu coração de tão vermelho está quase roxo, apertado, arrítmico, e meus olhos não ficam mais que dois compassos sem derramar.

Mas, enfim, de alguma coisa serve essa cabeça cheia de minhocas, palavras e insônias, aqueles 12 anos de análise. E certamente por conta do chamado da minha coroa que agora me guia, ontem dei um troço silencioso: eu fui dançar. 

(Eu sou a pessoa que chora na aula de dança)

E no último movimento, o que me fez travessar a sala e dizer meu nome infantil e, na mão inversa, ver, aguardar e ouvir o nome dela feito só para mim, eis que o parágrafo reaparece, reluzente e inédito, sonoro como a gargalhada de um Exu bonito, em rodopios. Pois que reproduzo aqui na forma de presente, agradecimento e sinal:

"e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço." (Raduan Nassar, Lavoura Arcaica)

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

cartografia 14

O horror tem agulhas fincadas nos olhos dos outros. Palavras facas mal ditas e estilhaços que se enfiam nos ouvidos dos outros. Tem a calma de cordas que amarram os braços atrás das costas e os pés sob a cadeira e uma boca sem mordaça, atônita, calada. O horror é inerte, inerme, verme, rasteja gosmento e em profundo si lên ci o. Ratos raspando suas unhas imundas no piso e nas paredes, conversando seus barulhinhos cheios de gerúndios com outros ratos no escuro e nos buracos se multiplicando feito ratos, ratos que são, sujos, podres, doentes, muitos ratos espalhando seus bafos com epidemias, pestilências, gases tóxicos, venenos.

O horror é esta dor que apareceu do lado direito inferior minha espinha, fina, disfarçada de quase nada, uma lâmina que raspa no osso e produz um som tão agudo que quase não se escuta, mas que está lá e quando menos se espera, apita fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.

O corpo afunda. As mãos congelam. O peito arde. Todas as articulações rangem como uma máquina velha e ineficiente pronta para morrer.

O horror paralisa.

Em si lên ci o.

***

Meu amor, eu não tenho nada bonito pra te dizer hoje. Nem alegre. As pessoas dizem que é preciso fazer poesia em tempos de barbárie, é preciso rir e fazer festa, pode ser, mas hoje eu não consigo. Eu sei que coisas boas estão acontecendo, eu reconheço isso, eu sei, é maravilhoso, mas hoje eu não sou nada além desse apito nas minhas costas e esse si lên ci o que atordoa. Me perdoa, meu amor. Hoje eu sou um mapa apagado, um corpo calcificado, uma rota interrompida, um buraco sem fundo, não tem água nem vento nem nada dentro de mim. Violentamente.