sexta-feira, 29 de maio de 2020

cartografia 31

Ritos de passagem são túneis que servem à luz que os encerra. O corredor polonês tem versões diferentes entre iroquois, prussianos, romanos, franceses e praticantes de jiu-jitsu, mas em todas elas existe o desejo de redenção para aquele que for forte o bastante, aguentar a dor da passagem e chegar vivo do outro lado. Entre os Sateré-Mawé, o Waumat – o rito do veneno de tocandira – se baseia na certeza de que o menino suportará a dor de 200 picadas de formigas carnívoras por 10 minutos em suas mãos infantis. O batizado não foi feito para afogar o pagão. A circuncisão não quer matar o bebê de hemorragia.

Mas no Brasil dos últimos tempos (dias? semanas? meses? anos?) não vivemos uma travessia que pressupõe a esperança do futuro prodigioso. Não tem o "depois", um "mundo melhor" nascido da "experiência transformadora" do confinamento. Como na mutilação do clitóris – que arranca pra sempre o futuro prazer sexual da menina que menstrua – esse país promove rituais de morte. Nosso corredor é um túnel escuro e interminável coberto de veneno e paulada, água e sangue subindo pelas paredes que se estreitam e pedaços do corpo arrancados antes mesmo de serem usados. Não se vislumbra o fim e não tem hora pra acabar.

Acho que não vamos sair nunca desse pesadelo porque estamos encarcerados há 520 anos, sendo sistemática e institucionalmente fodidos. Tem aqueles que são sempre alvo e morrem às baciadas: pretos, índios, pobres, mulheres, bichas, crianças. Tem alguns, transitórios e iludidos, que de vez em quando sentem um ventinho na cara e acham que vai passar, seguem pelas beiradas comendo farelos. E tem os mesmos-muito-poucos, enfileirados desde sempre com armas na mão babando de prazer ao chegar a hora de descer o cacete.

Só vai acontecer alguma coisa quando o morro descer e não for carnaval. Quando o fogo da justiça cobrir tudo. Quando terras, fábricas e cidades forem redistribuídas, bancos saqueados, as ruas então serão tomadas pela alegria.

Meu corpo está duro, a voz empedrada, o peito estilhaçado. Enquanto rezo, construo uma lanterna de papel pra alumiar e reconhecer meus amores durante a noite escura e infinita.