sexta-feira, 28 de agosto de 2015

do destempo

minha saudade é futuro do pretérito
futuro imperfeito

esperava tua figura na platéia
procurava até o último acorde
meu coração amarrado nos saltos vermelhos da trapezista

estaríamos na tua audiência
encharcaríamos tuas notas uma a uma
preencheríamos o horizonte de belezas

predestinaríamos

constituiríamos, enfim, em doce escândalo
a nova ordem das coisas
casa, mar de todos os santos
ouro mato vento
santíssima trindade

– teu nome dentro do meu
mar e amar dentro dos nossos
cond(enaç)ão –

a ausência do que viveríamos é mais presente que tua memória
que ainda exala
teimosa
seus odores

todos os dias

terça-feira, 25 de agosto de 2015

carta turva

os dias, inexoravelmente, passam.
desnorteados.
chega de repente uma lembrança, um vento bom. vai embora. não sei nem da saudade.
vez por outra a macaca pergunta rápido e meu coração dói doído; mas ela, como sempre, sabe de tudo. ela também está em silêncio.
não sei onde enfiar a poesia, os desejos partilhados, a risada solta, o calor do corpo.
meus olhos cansados teimam em não dormir direito atrapalhados pelos sonhos confusos que desde então me visitam toda noite - sonho muito e nada se aproveita. nosso dia seguinte nunca esteve tão incerto, o presente de oito anos acumulando faturas, os cadáveres de leões moribundos pela sala, os seus olhos de azul profundo miúdos se acinzentando, os corações mudos procurando remontar-se dos caquinhos, a cicatriz que ainda não fecha.
as contas, todas elas, não fecham.
é que não basta a saudade. não bastou o amor desigual. não bastou o esforço díspar. nosso futuro era maior e mais bonito que isso, e eu não me perdôo por não ter entendido a tempo de suspender o tempo e não deixar o sofrimento entrar na minha casa e na minha cama. minha cama que ainda padece.
envelheço rápido. estou tão triste. meu corpo está cansado, murcho, adoeço.
ainda vou esquecer as palavras que não queria ter lido e ficar só com a memória, ainda que pouca, do que foi bom.
por enquanto, só arde.
mas os dias, inexoravelmente, os dias passam.

domingo, 23 de agosto de 2015

carta diáfana

No dia 13 de dezembro de 2006 eu fui internada com uma infecção renal que evoluiu para uma septicemia. Eu tinha 33 anos, e além dos meus dois filhos lindos, minha vida valia uma separação e meio casamento em andamento, um disco inacabado, 50 e poucos quilos, um emprego de merda na repartição, cigarros, insônia, um gato maltratado. Minhas tardes de amor acabavam de virar brevidade, meus domingos eram tão tristes. Mamãe veio cuidar de mim. Papai telefonou pra tia Lucy, que enviou consecutivo um envelope anunciando em caligrafia antiga "Valdo e Hebe Pétalas Bentas de Santa Terezinha para Juliana". Dentro dele, duas dúzias de pétalas róseas de rosas secas, ainda perfumadas, fazedoras de milagres.

Tia Lucy era freira carmelita descalça, viveu sessenta e cinco anos em clausura, cada um e todos eles dedicados a rezar. Ainda menina fui visitá-la com meu pai e seus olhos eram maiores que os meus, do azul mais claro e mais transparente que jamais vi ou verei. Sessenta e cinco anos de joelhos e mãos entrelaçadas, carregando os pecados do mundo nas suas costas.

Depois de dez dias dormindo com o envelope sob o travesseiro, eu saí viva do hospital. Era antevéspera de Natal, fazia tanto calor, não comprei presentes pros meus filhos, não telefonei pra Tia Lucy. As pétalas de rosa foram parar na capa do disco, que a ela dediquei. O meio-casamento acabou. O emprego também, e a insônia, os cigarros, o gato. Meus domingos não são mais tristes e as tardes de brevidade se converteram em horizonte, casa e barco, rosal formoso, e além.

Pétalas de Santa Terezinha fazedoras de milagres.

Minha tia Lucy morreu esta manhã. Eu sinto tristeza e desamparo. Minha tia Lucy morreu neste domingo de sol e eu sinto algum desespero, apesar de saber que ela vai seguir olhando por mim, por meus filhos que ela não conheceu, por meus olhos grandes como os seus, por nossa casa e barco, nosso rosal formoso, e além.

Meu pai disse que hoje tem festa no céu porque a tia Lucy chegou lá. Eu, aqui, miúda, encolhida, vou dormir com o envelope sob o travesseiro.