sábado, 20 de julho de 2019

cartografia 13

Meu corpo é um continente. Nele cabe tudo e tudo nele transborda. Sangue, choro, gozo, palavra, música, gesto, silêncio, uísque, ausência, a culpa de todas as encarnações, a alegria dos encontros verdadeiros, saudade, derrota. Cabem nele aquilo que não lhe dou, o que eu não consigo e o que eu queria lhe dar. Meu canto pra quem não foi, minha voz pras cadeiras vazias do teatro, todas as cadeiras de todos os teatros com ou sem pessoas sobre elas, e ainda meu desejo e minha dúvida. Meu corpo é continente de tudo quanto eu sinto e vejo e eu sofro mais um pouco a cada dia porque não sei o que fazer com tanta dor que nele cabe e daí não cabe mais então vaza. Meu corpo vazante de contradições, meu corpo gostoso, esta bunda grande, estes peitos caídos, estes pelos que me dão preguiça de tirar mas que acho feios, meu cheiro de mulher agarrado nos pelos, e as duas minhas mãos que entendem tudo sempre, orientais, meu corpo que oferece e arrepia e tranca e grita. Meu corpo contém emocionado qualquer espécie de mínima felicidade e esperança: novos velhos amigos, irmãos, procissões, canções, pilhas de livros, ruas de pedra, varal de lâmpadas, talco, olhos vendados, abraços demorados, taturanas, crianças, café. Meu corpo dá rodopios, crispa, abre as asas e levanta os olhos, mas é terra contígua acorrentada de desesperos feminis-civis-infantis-quadris porque é continente forjado em estupros sucessivos históricos ancestrais. Meus quadris cresceram depois de dois partos, como crescem os continentes depois de maremotos, estios e abalos císmicos. Minhas articulações e músculos envelhecem como envelhecem as montanhas e o fundo do mar formando camadas sobrepostas e estratos que se friccionam, aquecem, esfriam e conformam óleos fedorentos e minerais coloridos translúcidos. Uma avalanche continental salpicada de diamantes e carne podre é o que cabe neste meu corpo pangeia, meu corpo américa, meu corpo um.

Estamos diante da iminência da morte.

Os continentes sobreviverão como sempre sobreviveram os continentes aos cataclismas, meteoros e eras glaciais. Haverá o grande silêncio e então outros diamantes e outras gorduras apodrecidas, elementos e moléculas de milhares de séculos infinitos preguiçosos a experimentar sua nova dança de espirais geométricas.

Antes, muito antes, nós morreremos de fome, tiro, injustiça e falta de poesia.

Isto eu não sei onde enfiar.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

cartografia 12

Escreve. Apaga. Escreve. Apaga.
Às vezes o esforço de juntar tudo, de ser coerente, ter unidade, fazer poesia, é impossivelmente difícil. Às vezes fica tudo quebrado mesmo, e o peito ardendo sem entender, sem gostar, sem aguentar. Às vezes não vale o trabalho.
Eu tenho sentido muito medo.
Apaga, escreve, apaga, escreve.
Tenho saudade de escrever à mão e ver meus riscos, rasuras, substituições, as palavras que vão se empilhando, as frases sujas, períodos confusos trocando de lugar com setas, parêntesis, uma reescritura exausta, sobreposta, caótica. Na escrita higiênica de computador as dúvidas, tropeços e erros simplesmente desaparecem como se nunca, como se só as certezas, isso é um horror. Diz que tem um aplicativo que tenta imitar isso aí, patético. Não sei mais como é a minha letra escrita, ela está ficando ilegível.
Escreve, apaga, escreve, escreve, apaga, apaga.
Uma vez minha analista me disse que sou uma mulher cindida. Outra vez ela me disse que preguiça é a palavra mais odiosa que existe, porque desrespeita o tempo que as coisas precisam pra existir crescer amadurecer morrer dentro da gente, e que não fazer nada não quer dizer que nada esteja acontecendo. Ela disse isso? Eu lembro disso?
Escreve, apaga, apaga, apaga. Escreve.
Eu não quero ser invisível.
Eu quero que este medo vá embora.
Meu corpo está maior e menor, em pedaços.
Eu preciso cantar pra não morrer.