quarta-feira, 23 de setembro de 2020

cartografia 37

Os projetos que desenho ficam tatuados na fina película que envolve minha medula espinhal do cóccix até onde a primeira cervical quase roça o osso occipital. É este mesmo tecido invisível que conforma os desejos, que têm por modo de operação subversiva o ardil da liquefação, dissolvendo-se dissimulados na corrente sanguínea para alcançar, quando menos se espera, os pequenos lábios, as pálpebras e seus líquidos umectantes, os tendões dos joelhos, até infiltrarem-se nas pontas dos meus dedos, que desenham. 

Projetos são garrafas ao mar. Muitas restam emudecidas nas areias profundas dos oceanos escuros. Tantas se estilhaçam chegando à praia e suas palavras escritas em papel fino afogam-se indecifráveis. Poucas completam a travessia, presente que deixa pegadas na areia. Desejos são pegadas de flores escondidas entre as páginas do livro preferido; teimosas, insistem o perfume, sobrevivem às intempéries, agarram-se na carne da memória, voltam sempre. Entre as garrafas e os olores obstinados mora o desígnio insondável que-o-gado-vai-ao-poço.

Na posta restante do meu coração dançam juntas, aos rodopios, três palavras mágicas - ora amantes, ora impossíveis:

Desenho: arte, plano, representação. Do latim "designo,as,āvi,ātum,āre": marcar, traçar, notar, desenhar, indicar, designar, dispor, ordenar; e derivado do latim "signum,i": sinal, marca.

Projeto: plano, esperança, arremedo, predeterminação, intenção, trabalho. Do latim "projectus,us": ação de lançar para a frente, de se estender, extensão.

Desejo: impureza, capricho, prazer, vontade, intenção, necessidade, pedido, esperança. Palavra de origem obscura, provavelmente do latim "desidĭa,ae": estar/permanecer sentado; mas com evolução semântica para o ócio, donde as acepções: inércia, indolência, repouso, prazer.




quinta-feira, 10 de setembro de 2020

cartografia 36

Súbito, meu corpo reclama meus partos.

João veio antes da hora pra me mostrar que não dava tempo de não entender. Aos 21 anos, enjoada durante os 6 meses em que me soube grávida, mais magra do que devia, com o enxoval mal começado, ele chegou urgente e sem pulmões, agarrou sua vida como fazem os teimosos e valentes: força descomunal, dedos longos e olhos imensos. Eu não vi o João nascer, estava atordoada e em desespero, sem entender por que meu corpo mandava embora aquele menino tão pequeno. Cheio de tubos, fios e esparadrapos, a gestação terminou do lado de fora, em 35 dias infinitos de uti, bomba de leite, corte cesariano infeccionado, derrame, alimentação parenteral, isolete. A minha voz cantou pro João incansavelmente, desde o caminho pro hospital até o depois do sempre. João veio na hora certa pra me fazer mãe.

Luiza veio antes da hora pra me mostrar que o tempo é o senhor mais bonito. Aos 30 anos, um casamento despedaçado, mais magra do que devia, metade da casa encaixotada de uma mudança que não vingou, sem enxoval nenhum, ela me amarrou no pé da vida e agarrou-se no meu útero ruim como fazem as valentes e teimosas: dança incansável, mãos fortes e olhos imensos. Depois de 2 meses em repouso caseiro e mais 4 semanas hospitalares horizontais, eu, taquicárdica de tanto remédio, tive coragem pra parir tão naturalmente quanto possível numa cadeira obstétrica fria sem poesia nenhuma. A memória mais linda dessa noite é o João pendurado na janelinha mágica, sorrindo ao ver a irmã ser limpa n'água, entre os panos azuis, sangue e placenta. A minha voz cantou pra Luiza incansavelmente naqueles 28 dias infinitos de hospital até o depois do sempre. Luiza veio na hora certa pra me fazer mulher.

Um filho e uma filha. Duas estreias. Dois ritos de passagem. Tudo aqui inscrito ecoando dentro de mim.

Sinto um pouco de raiva deste corpo que não foi e ainda não é muito amistoso comigo mesma, por vezes desobediente, inerte, irreconhecível. Mas agradeço, envaidecida, por sua generosidade e sua maciez (dentro e fora), casa que tece memória, voz, alimento e poesia. E, embora cansada, me orgulho da luta cotidiana que é ser quem eu sou.

sábado, 5 de setembro de 2020

cartografia 35

esta não é uma carta de marear
não é uma bússola, um compasso
nem verso ou confissão
não serve nem pra uma linha fina no ar do tempo

antes

é a constatação ridícula de que é preciso escolher a luta possível e, portanto, acolher-me em todas as outras derrotas: a poeira nos cantos da casa, nos olhos, nas mucosas; a gravidade; a minha incapacidade de tolerar a negação, o desamor e a injustiça.

minha luta possível agora é conseguir dar três voltas no quarteirão trinta minutos de caminhada todos os dias eu não penso nem ponho vírgulas para vencer a vergonha de escrever que este é meu desafio que bosta são três voltas juliana a senhorinha na cobertura cor-de-rosa do prédio vizinho faz uma ginástica muito energética todas as manhãs hoje ela até estava de top shorts e viseira e tenho certeza de que ela tem mais energia do que eu envelheci duzentos e noventa e oito anos nos últimos meses não tenho coragem de colocar um top nem shorts mas vamos lá três voltas trinta minutos eu consigo.

lanço meus desígnios para o próximo ano
verter cartografias em canção investigação improvisacional
desenho um filme bonito com sobreposições
preto e branco
meu corpo enlutado que luta
minha voz exausta desse mote-contínuo a que estamos condenados

predestino em desejo e desespero