quinta-feira, 10 de setembro de 2020

cartografia 36

Súbito, meu corpo reclama meus partos.

João veio antes da hora pra me mostrar que não dava tempo de não entender. Aos 21 anos, enjoada durante os 6 meses em que me soube grávida, mais magra do que devia, com o enxoval mal começado, ele chegou urgente e sem pulmões, agarrou sua vida como fazem os teimosos e valentes: força descomunal, dedos longos e olhos imensos. Eu não vi o João nascer, estava atordoada e em desespero, sem entender por que meu corpo mandava embora aquele menino tão pequeno. Cheio de tubos, fios e esparadrapos, a gestação terminou do lado de fora, em 35 dias infinitos de uti, bomba de leite, corte cesariano infeccionado, derrame, alimentação parenteral, isolete. A minha voz cantou pro João incansavelmente, desde o caminho pro hospital até o depois do sempre. João veio na hora certa pra me fazer mãe.

Luiza veio antes da hora pra me mostrar que o tempo é o senhor mais bonito. Aos 30 anos, um casamento despedaçado, mais magra do que devia, metade da casa encaixotada de uma mudança que não vingou, sem enxoval nenhum, ela me amarrou no pé da vida e agarrou-se no meu útero ruim como fazem as valentes e teimosas: dança incansável, mãos fortes e olhos imensos. Depois de 2 meses em repouso caseiro e mais 4 semanas hospitalares horizontais, eu, taquicárdica de tanto remédio, tive coragem pra parir tão naturalmente quanto possível numa cadeira obstétrica fria sem poesia nenhuma. A memória mais linda dessa noite é o João pendurado na janelinha mágica, sorrindo ao ver a irmã ser limpa n'água, entre os panos azuis, sangue e placenta. A minha voz cantou pra Luiza incansavelmente naqueles 28 dias infinitos de hospital até o depois do sempre. Luiza veio na hora certa pra me fazer mulher.

Um filho e uma filha. Duas estreias. Dois ritos de passagem. Tudo aqui inscrito ecoando dentro de mim.

Sinto um pouco de raiva deste corpo que não foi e ainda não é muito amistoso comigo mesma, por vezes desobediente, inerte, irreconhecível. Mas agradeço, envaidecida, por sua generosidade e sua maciez (dentro e fora), casa que tece memória, voz, alimento e poesia. E, embora cansada, me orgulho da luta cotidiana que é ser quem eu sou.

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