sexta-feira, 10 de maio de 2019

cartografia 3

Eu fiz 12 anos de análise. Os 10 primeiros foram só resistência.

Eu não queria estar ali. Chegava atrasada, não ia, não pagava, não queria deitar no divã, discutia detalhes semânticos estúpidos, duvidei da competência da minha analista porque ela tinha joanetes e um nome estranho. Chorei muito, falei demais e disse muito pouco. Adoeci, machuquei um tanto de gente, inclusive a mim mesma, fui pro hospital, quase morri, tive que tomar remédio pra não enlouquecer. Era peixe no samburá, debatendo desesperada como fosse asfixiar. Eu não queria ser, mas sim parecer com aquilo que eu achava que todo mundo ia achar bonito que eu tivesse sendo. E aquele processo violento me colocava diante da escolha única possível: ou a gente morre, ou a gente vive. E é tão mais fácil morrer.

Mas nos dois últimos anos de análise experimentei a sensação única e maravilhosa de entrega, perdão, amor e profundidade. E ouvi então o silêncio escuro transparente do oceano mais limpo e mais bonito que habita o centro do meu coração e da minha inteligência. Eu gostei molhado do que encontrei. Mudei a vida, ensolarei, no pra-sempre-bom das alegrias desimportantes e na beleza do dia-a-dia predestinado de poesia.

Escolho viver. Meu coração cavalo sem domar. Minha voz vento e água, condão e condenação, a serviço. Olhos molhados. Não ando só. E dou graças.

Hoje, é meu corpo envelhecendo que resiste, volta a ser lambari no samburá. Tem sono, dor, perde o tempo, debate, machuca, desencontra, arfa, desmaia. O movimento que nasce nos meus olhos e no meu peito lhe é estranho, alheio, como se os contornos e os preenchimentos não me pertencessem. Eu não sei onde estão minhas costas, minha espinha é esfarelada, meus pés fazem bolhas internas sanguíneas sucessivas, como se não pudessem tocar o chão, ao tempo que meus quadris, que sempre julguei fáceis, são um peso rígido mal esculpido em pedra seca, áspera e sem formosura.

No meu corpo ainda não acho a música, tampouco o silêncio, menos ainda a leveza. Ainda quero parecer. Mas a escolha permanece a mesma. E a minha resposta também.

Nenhum comentário: