sábado, 27 de janeiro de 2018

carta para meus filhos

Há algum tempo, vocês sabem, não comemoro datas tradicionais, aniversários, dia das mães, natal. Acho mais bonita a celebração dos pequenos milagres cotidianos, o cheiro do café coado de manhã cedo, a comida fresca na mesa, um vinho ocasional, a alegria incomparável das pequenas e profundas conquistas. Talvez porque saiba, definitivamente, que minha sina (dor e prazer) é cuidar de gente, com minha voz e com minhas mãos, e isso não é coisa que valha algum dinheiro nesse mundo todo torto, e no final das contas, nem me importa mais, a gente vai equilibrando os pratinhos. Talvez também porque envelheça rápido e entenda, cada vez mais profundamente, aquilo que aprendi nas aulas de filosofia, e que está no evangelho de São João: os atos de amor são a única coisa que realmente fica - e entendo por ato de amor as diversas e imprescindíveis formas de gentileza, compaixão, justiça, alimento e beleza, e ainda todas as maneiras com que duas ou mais pessoas resolvam se relacionar verdadeiramente com seus corpos e seus espíritos.
Enfim, tudo isso pra dizer que não escrevi pra vocês no ano novo ou aniversário, mas agora, numa tarde quente de janeiro, em que percebo que temos coisas a comemorar, miúda e emocionadamente, pois que nas últimas semanas vivemos pequenos milagres e singelas conquistas, resultados de nossa valentia, teimosia, inteligência, da generosidade dos que nos cercam, e de uma pequena dose de sorte (que tantas vezes nos falta).
Pois vejam.
O Uruguay é um imenso azul celeste de horizonte infinito e além, com um vento incessante, e a gente se sente grande e pequeno ao mesmo tempo. Quando vocês vierem (e tenho certeza que virão), vão ver uma gente comprometida, sabida, que usa suas coisas à exaustão (me lembrei a todo tempo de um dos meus poemas preferidos do Brecht, "De todas as obras", e a sublime beleza das coisas que foram tocadas por muitas mãos...), que ri largo, que já sofreu muito, não tem quase nada, e se orgulha do lugar que está construindo; que te beija as bochechas e aperta a mão de verdade; que põe plantinhas pra crescer em todos os cantos; que tem muitos livros, muitos!; que fica na rua até tarde aproveitando o pôr do sol. Enfim, uma gente e um lugar pra viver.
E aqui, miúda, quente e cheia de ventos, eu lembrei de uma coisa esquecida.
Estar num lugar em que ninguém te conhece é das sensações mais magníficas que existem, a inebriante iminência de se ser tudo o que você queria ser sem medo. Conhecer gente muito diferente da gente, no variado comezinho, e ainda assim, reconhecer-se semelhante e partícipe, é sublime. Uma combinação linda de solidão, alegria, surpresa e completude. Incerteza e poesia.
E olha que coisa: vocês estão, por outras circunstâncias, diante dessas mesmas possibilidades, e eu me emociono (e é exatamente isso que queria lhes dizer) com a importância desse momento: você, João, e você, Luiza, e a imensa potência do que estão construindo em e para suas vidas, sozinhos, mas de mãos dadas a uma grande força amorosa erguida desde muito tempo por aqueles que estão juntos de vocês e sempre estiveram. Neste ponto do caminho, de incerteza e poesia, vocês podem se inventar e se reinventar. Vocês podem ser o que quiserem ser, não ser nada e ser tudo. Vocês podem conhecer gente diferente e igual. Mesmo que a realidade feia e imperativa mostre suas unhas e seus limites, mesmo que estejamos condenados a uma engrenagem perversa e injusta (e mudar isso nos custe talvez a vida), vocês podem ser, onde for, do jeito que for, com quem for; com frio na barriga e tremor nas mãos, vocês podem, intransitivamente - a tal combinação linda de solidão, alegria, surpresa e completude.
Isso fez um tcharam aqui, e preenche agora meu peito vermelho de um sentimento único e indizível. Choro. Porque eu sei (ao tempo que também não sei) o tamanho das suas asas, a profundidade dos seus olhos, da água e do sangue que corre na carne de que são feitos. E dou graças.
A isso, a esse horizonte igualmente celeste e infinito, cheio de vento, sol e sorrisos largos, à solidão e à alegria, eu ergo meu copo, e brindo a vocês dois, João dos olhos de floresta, Luiza ensolarada dos dias, meus amores de ouro, e agradeço a sorte, honra e grandeza que é ser sua mãe.
Montevidéu, 17 de janeiro de 2018.

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