quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Ele agora partiria simples e reto

Ele agora partiria simples e reto como uma flecha, como uma espada, ou antes como uma lâmina. Seu corpo firme rasgaria o ar no seu caminhar assertivo e atravessaria a porta, a rua e o mundo inteiro como um punhal atravessa a pele no golpe desferido, liso, úmido e fácil, porque sabe que não é a força mas sim o jeito que penetra a faca até o fim, não é o quanto a mão aperta a empunhadura mas o tanto que o braço empurra o peso do corpo pra dentro da carne, num movimento que nasce na cintura e encerra do outro lado no vazio que começa onde termina a pele das costas.

Os olhos de menino e o gesto inquieto deles nascido anunciariam a partida. No gesto, as mãos fazedoras das linhas aonde mora o infinito, mãos que redesenhavam o corpo dedicado da mulher pequena e delimitavam seus contornos, reconstruindo de novo sua pele no ar, e definiam a largura e a altura, moldavam a cintura, as ancas, a nuca, os seios, as pernas, a boca, o sexo, que se tornavam então subita, deseperada e urgentemente seus. O mesmo gesto que dava forma ao vazio das palavras inexistentes era a voz sem corpo da sua alma sem pouso. A alma sem pouso do homem assim partiria porque era da sua natureza, porque não havia casa, ele presumia, que lhe fosse continente, e sobretudo porque o tempo o empurrava incansavelmente, o chamava, e esperava.

E haveria a mulher com seu vestido tão azul, linda como uma tarde vermelha, com os olhos tão grandes e tão doídos, tão feminina, tão insuportavelmente feminil. E teria vontade de ter de novo aquele corpo, morder as carnes macias, e ouvir a voz e afogar a cara nos cabelos, e ficar ali dentro no quente das suas coxas, no silêncio dos seus braços, no fervor das suas preces.

Ele agora partiria simples e reto como uma lâmina e atravessaria a porta e a rua como uma flecha, seus bolsos iriam vazios e seu coração iria fingindo um desprendimento que sua alma queria tanto acreditar, e o medo estaria atrás da sua orelha direita todo o tempo, mas o pânico da eternidade vestido de coragem cavalheiresca seria ainda maior do lado esquerdo, e a roda giraria então para frente, a menos que ele percebesse que bastava uma única palavra para acalmar o cavalo selvagem em seu peito de menino, uma única palavra apenas para libertar o choro de tantas infâncias.

Ele não ouviria a palavra, ele não diria nada. Seu corpo-monolito partiria com medo e coragem, não sem antes recolher embaraçado a flor ofertada, e apesar da dúvida monstruosa que inesperadamente se apossaria do seu coração masculino, ele seguiria seco e branco, levando consigo a beleza e a alegria das coisas sem importância, a certeza dos dias deles vividos um por um, e emaranhado nos seus braços livres levaria os ventos suspendidos e a água transbordada com que comporia em movimento e cor o novo sentido do mundo.

Um comentário:

Anônimo disse...

que lindo, ju... que lindo... queria ter a coragem de publicar escritos assim...