terça-feira, 21 de novembro de 2006

Ela vestiria seu vestido tão azul

No dia da sua partida ela vestiria seu vestido tão azul, que caindo solto sobre seu corpo pequeno desenharia os seios pontudos e as carnes ainda redondas. Traria nos olhos castanhos, grandes e assustados, o peso das encarnações todas, molhados de uma saudade antecipada. Dentro do peito agora azul haveria o coração vermelho que sabe, sempre soube, dos monstros atrás das portas e dos fantasmas sob os tapetes. No coração grande tantas prateleiras ocupadas, bagagem pesada a dela, carrega no peito seu o amor de outras tantas carnaturas, as palavras, os filhos, os homens, os sons e os ventos todos, as águas sem fim.

Sabia que chegaria o dia anunciado, a partida premeditada desde o primeiro dia, nada prenderia aqueles olhos, aquelas mãos, nem o enredo das suas palavras, nem seu corpo habilidoso e fácil, nem seus olhos tristes, nem o riso solto. Talvez a voz pudesse, vento que sai da garganta em busca do porto seguro dos ouvidos continentes, e que suspendendo o mundo longe do chão carrega seu umbigo feminino pra dentro da casa dos homens e lá fica, como uma lembrança boa, como um desejo sujo. Mas a sua voz que ele pouco quis ouvir, teia de aranha safada, rebenta diante do corpo masculino e duro deste homem que agora partiria simples e reto como uma flecha, como uma espada, ou antes como uma lâmina.

Na sua mala que fica o fardo da mulher que tem o coração e os olhos maiores do que as pernas, a alma despudorada que quer a pequena delícia das possibilidades, e as mãos infantis que não sabem desenhar mas que adivinham o contorno do mundo. Nos bolsos do homem todos os espaços vazios, os caminhos abertos, o tempo que o convida e o espera, generoso, para ser reconstruído e mudado em movimento e cor, as linhas fugidias desembaraçadas de quem não tem nada a perder, e a solidão espreitando como um velho no canto da sala, que um dia sem mais nem menos aparece pra jantar e senta na cabeceira da mesa, depois toma a cama, o banheiro e o quintal. E guardado no altar dos dias deles vividos um por um, a vontade compartilhada e secreta, os nomes, os lugares e as alegrias que só eles conhecerão, a memória do corpo intransferível, a urgência que jamais poderá ser roubada.

No dia da sua partida ela vestiria seu vestido tão azul e ela estaria pronta, sanguínea e delicada, com seu amor tecido em doação numa mão e seu silêncio na outra, os dentes aparecendo tímidos atrás do sorriso atrapalhado, molhado do choro que cai bonito dos olhos, e sem espanto, ela entregaria a flor sobrevivente e desmanchada nascida do tormento doce do seu coração vulcânico.

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