No dia da sua partida ela vestiria seu vestido tão azul, que caindo solto sobre seu corpo pequeno desenharia os seios pontudos e as carnes ainda redondas. Traria nos olhos castanhos, grandes e assustados, o peso das encarnações todas, molhados de uma saudade antecipada. Dentro do peito agora azul haveria o coração vermelho que sabe, sempre soube, dos monstros atrás das portas e dos fantasmas sob os tapetes. No coração grande tantas prateleiras ocupadas, bagagem pesada a dela, carrega no peito seu o amor de outras tantas carnaturas, as palavras, os filhos, os homens, os sons e os ventos todos, as águas sem fim.
Sabia que chegaria o dia anunciado, a partida premeditada desde o primeiro dia, nada prenderia aqueles olhos, aquelas mãos, nem o enredo das suas palavras, nem seu corpo habilidoso e fácil, nem seus olhos tristes, nem o riso solto. Talvez a voz pudesse, vento que sai da garganta em busca do porto seguro dos ouvidos continentes, e que suspendendo o mundo longe do chão carrega seu umbigo feminino pra dentro da casa dos homens e lá fica, como uma lembrança boa, como um desejo sujo. Mas a sua voz que ele pouco quis ouvir, teia de aranha safada, rebenta diante do corpo masculino e duro deste homem que agora partiria simples e reto como uma flecha, como uma espada, ou antes como uma lâmina.
Na sua mala que fica o fardo da mulher que tem o coração e os olhos maiores do que as pernas, a alma despudorada que quer a pequena delícia das possibilidades, e as mãos infantis que não sabem desenhar mas que adivinham o contorno do mundo. Nos bolsos do homem todos os espaços vazios, os caminhos abertos, o tempo que o convida e o espera, generoso, para ser reconstruído e mudado em movimento e cor, as linhas fugidias desembaraçadas de quem não tem nada a perder, e a solidão espreitando como um velho no canto da sala, que um dia sem mais nem menos aparece pra jantar e senta na cabeceira da mesa, depois toma a cama, o banheiro e o quintal. E guardado no altar dos dias deles vividos um por um, a vontade compartilhada e secreta, os nomes, os lugares e as alegrias que só eles conhecerão, a memória do corpo intransferível, a urgência que jamais poderá ser roubada.
No dia da sua partida ela vestiria seu vestido tão azul e ela estaria pronta, sanguínea e delicada, com seu amor tecido em doação numa mão e seu silêncio na outra, os dentes aparecendo tímidos atrás do sorriso atrapalhado, molhado do choro que cai bonito dos olhos, e sem espanto, ela entregaria a flor sobrevivente e desmanchada nascida do tormento doce do seu coração vulcânico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário