sexta-feira, 13 de março de 2020

cartografia 24

Minha cartografia conheceu uma nova pena: a linha revel.

A sensação mais próxima à que senti hoje foi aquela das vésperas dos meus dois partos prematuros, quando escutava, em feminil desespero, meu corpo tomar decisões próprias. Meus filhos, tão pequenos, por que queriam sair de mim? Por que meu útero queria tirá-los de dentro de si antes da hora? Como imobilizar aqueles movimentos involuntários, as contrações ritmadas, a taquicardia? Durante o parto você se dá conta de modo absoluto e imperativo que o corpo é quem está no comando – pélvis, dilatação, espasmo, rugido, trovoada, movimento de placas tectônicas, big bang. Eles nascem, crescem, você se torna dispensável, a vida segue.

É muito difícil controlar minhas mãos, eu observo seus movimentos involuntários com espanto e algum fascínio. Eu sei o caminho, meus pés seguem o percurso nas calçadas do centro da cidade sob o sol bonito da tarde, e vão desviando ligeiros de um mar de pessoas que não controlam suas mãos, salivas e suores, e é justamente ali, no meio da multidão que freme caótica, como quem assiste a um filme distópico, que eu percebo que há um lugar na minha medula em que reina a desobediência, em todas as medulas da cidade há desgoverno e pulsão, o corpo que escolhe seu próprio movimento, e a dificuldade imensa de controlar as próprias mãos.

A vida segue. A pandemia está nos jornais e nos celulares mas não no corpo da moça do caixa da 25 de março que usa luvas, coça os olhos dentro dos óculos com a mesma luva que alisou o tecido, digitou na máquina registradora vinte e sete reais e oitenta centavos e me deu o troco pra nota de cinquenta verificada em sua autenticidade com a luva encardida de um dia inteiro alisando tecidos e notas, e entre mim e ela um balcão de sessenta centímetros.

E tem a rua. E as milhares de pessoas que moram e ou vivem nelas, pra quem não haverá álcool gel, luvas, máscaras ou a distância segura de um metro, mas tão somente o desgoverno medular e as bactérias e vírus saltitantes de nosso falatório.

Volto pra casa sentindo nas minhas falanges seu risco insurgente enquanto me desespero em olhar praqueles que vão morrer nesse pandemônio coroado.

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