sábado, 7 de março de 2020

cartografia 23

O Brasil atravessa um período de trevas, e o potencial destruidor de sua política de estado baseada no horror e na violência ameaça, entre outras urgências, o capital simbólico que nos identifica – e portanto a existência de qualquer poesia. Neste momento, minha pesquisa artística tenta criar estratégias para subverter a lógica colonial sistêmica que está impregnada em meu discurso, pensamento e prática artística.

Cito Luiz Antonio Simas para dizer que o ponto de partida dessa nova investigação é o corpo: "... o projeto de normatização deste Brasil de horrores, para que seja bem sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. É o corpo, afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de forma mais contundente o projeto colonizador fundamentado na catequese, no trabalho forçado, na submissão ostensiva da mulher e na preparação dos homens para a virilidade expressa na cultura da curra: o corpo convertido, o corpo escravizado, o corpo feito objeto e o corpo como arma letal.”

Minha primeira atitude é reconhecer meu corpo político: sou mulher, branca, 46 anos, mãe de 2 filhos, casada, bissexual, brasileira, artista independente. Vivo na maior cidade da América do Sul. Sou social e economicamente privilegiada. Pude e posso escolher. Minha ferramenta de trabalho é a minha voz que é meu corpo que é único que muda se transforma e se movimenta. Meu material de trabalho é a palavra que é música que é gesto que é cena – a canção.

As perguntas são: como compreender o corpo como protagonista do pensamento e da atuação política e artística (e não o contrário)? Como construir uma vocalidade que seja viva, gesto e movimento, que liberte e não aprisione, investigativa e não manipuladora? Como lidar com o tempo impresso no meu corpo? Como reabitá-lo e redimensionar suas formas e possibilidades para que não enrijeça? Como horizontalizar minhas relações com plateias, alunxs, artistas, trabalhadorxs em busca de um intercâmbio real e amplo, sem sucumbir à lógica colonial e do capital? Como cantar a canção num momento em que a perda da mediação da palavra ameaça o pacto civilizatório?

(exercício de organização do coração
de reconhecimento, de não saber
tateio o escuro das minhas dores
bato o joelho na quina da parede
sangro
sigo)

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