sábado, 8 de junho de 2019

cartografia 9

Sou filha de uma geração de mulheres infelizes. Que não puderam escolher. Que quando trabalharam, sentiram a culpa de duas mil encarnações por abandonar seus filhos. Que quando não trabalharam, ficaram frustradas. Que não souberam o que ser depois que não eram mais mães indispensáveis de seus filhos. Que não souberam o que fazer com aquele homem estranho que estava dentro de casa quando os filhos partiram, maridos que, por sua vez, não esperavam quase nada delas, ou somente que cuidassem dos filhos, da casa e deles mesmos, quando envelhecessem satisfeitos depois de 35 anos de trabalho. Mulheres que não prepararam sua solidão, sua individuação. Que pararam de transar na menopausa, que nunca se masturbaram, que não beijaram na boca, e que não tiveram outro homem, outra mulher. Que viveram, e sobretudo envelheceram sem direito ao desejo. E que se tentaram se reinventar, causaram uma hecatombe interna e externa. Que não tiveram a condição psíquica de entender a grandeza de suas ações, pois que, apesar de tudo, suas filhas são mulheres outras, diferentes, até invejáveis. Essas mulheres agora, velhas, não conseguem desfrutar a alegria de terem sido o que era possível ser diante de um mundo em destruição. Perdidas entre o que deveriam ter sido, o que gostariam de ter vivido, e a vergonha do que realmente são.

Meu corpo responde a este legado.

Há duas semanas eu estou inerte, letárgica. Mergulhei numa apatia estranha, estou lenta, pesada, endurecida. É claro que tem os cadáveres dos leões cotidianos acumulados na sala, no quarto, na cozinha. Tem os tantos pratinhos espatifados no chão. E tem a derrota civil, esse país que não cansa de nos foder. Mas tem essa herança genética, esse lastro que mostra seus contornos e sombras, todos os dias.

Hoje é o meu corpo que envelhece. Eu não sou a mesma mulher que a minha mãe - graças a ela, inclusive. Mas eu também sou aquela mulher, porque sou uma mulher brasileira, meu corpo foi domesticado, há 519 anos, pra ser subalterno, frustrado e infeliz.

É por isso que não posso sucumbir.

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