sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

na travessia, dia 4

os armários de madeira, metros e metros de prateleiras, vitrines e bancas espalhados na loja grande, alta e arejada abrigam toda sorte de tecidos. a enchente do ano passado estragou muita coisa, mais de duzentos mil de mercadoria perdida. alguns cortes atingidos pela água barrenta são vendidos a seis reais o metro, com o aviso cuidadoso da vendedora que mostra a mancha e me pergunta, vai querer assim mesmo? quero, gosto de tecido com história e a blusa de algodão florido carregará pra sempre a água de mantena em sua trama. loja de tecido me enternece tanto, guarda um silêncio antigo. os olhos velhos de seu archimedes brilham quando pergunto se ele tem linho - mostra a camisa cinza clara que usa sobre os ombros franzinos, a senhora conhece, não é, é caro porque não tem nada igual a isto, e quando eu cismo com coisa boa, pode custar cem, duzentos, trezentos, não tem jeito, eu compro mesmo, só tem uma fábrica hoje, acabou tudo. a voz é rouca e a fala pausada pra garantir o perfeito entendimento. peço pra ver aquele lá em cima, então ele sobe as escadas, trepa ágil nas estantes, suas mãos artríticas deslizam pelas peças, eu sei que mesmo no escuro de dentro da morte ele saberia reconhecer e nomear cada urdidura com essas mãos velhas. a blusa de linho cinza pousará no meu corpo com o carinho das mãos de seu archimedes.

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eu gosto quando seu beijo e sua língua enfraquecem meus joelhos e enxarcam minha calcinha.
eu gosto quando me surpreende enfiando suas patas de minotauro entre as minhas pernas.
eu gosto quando seu pau fica duro, descontrolado, e me ataca debaixo da bica d'água, ao lado da cerca viva, e qualquer passante mais atento perceberia que estamos trepando enquanto as pessoas conversam na varanda.
eu gosto de você e da sua fome.
e mais ainda quando me chama de galega.

"Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar mel de flor. E me embebia – o que estava me ensinando a gostar da minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. Altas borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante de imagem, e já aprontada para a noite, em camisola fina de ló. Otacília indo por meu braço às festas da cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de molmol. Ao tanto, deusdadamente ele discorresse. De meu juízo eu perdi o que tinha sido o começo da nossa discussão, agora só ficava ouvinte, descambava numa sonhice. Com o coração que batia ligeiro como o de um passarinho pombo. Mas me lembro que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez – alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia
inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva. No tempo, não apareci no meio daquilo. Assim foi que foi."


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