quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

na travessia, dia 3

no primeiro dia do ano, o amor e a casa.

ela está doente, câncer, metástase. mais de 60. tem tanta força, tanta, que quando passa os passarinhos suspendem o ar. seus movimentos são ligeiros, passos e olhos miúdos rápidos, língua ferina, humor colérico. ela tem um sorriso imenso. o amor dos filhos e netos que não teve está costurado nas incontáveis toalhinhas espalhadas pela casa, nas coisas velhas expostas pelas prateleiras, nas relíquias escondidas nos baús. ela é pequena, não sente nenhuma dor, e seu nome jovina ganhou aqui o sobrenome do sertão. ela é.

ele é rústico; fala um idioma pessoal; tem um sistema próprio; meio bicho, meio homem, tem 46 mas parece menos; alfabetizado; cheira a terra e cerveja. não suporta o silêncio, deve ser alto demais pra seus ouvidos de poucos pensamentos. ele faz tudo que ela quer sem se saber mandado: água o jardim, enche o filtro, pendura as roupas no varal, lava as panelas de ferro, passa o café, varre o terreiro, ri muito, e à noite, encharcado, dorme na varanda, com os pés-cascos para cima. ele é forte, e a cidade toda o conhece, o calango.

quando soube da doença, ele chorou igual criança e ela deu-lhe uma bronca, que eu ainda não morri. na noite de ontem, ele a tirou pra dançar, sorridentes e cúmplices. trepam, menos às vésperas da quimio porque diminui as plaquetas. ele lembra o horário dos remédios e de beber água sempre, cultiva mudas pro jardim da casa nova que não fosse a doença já estaria pronta. ela o levou pra passear de avião, escada rolante e elevador, estudou com ele pra prova de motorista, dá presentes, administra o dinheiro e orienta cada passo. Cuidam tanto um do outro, tanto, de um modo intumescido e brutale (como ela diz), e ainda assim, tanto. meus olhos derramam de admirar: o amor é tão imenso quanto improvável.

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no fim da tarde, a casa nos recebeu.

corredor estreito coberto de heras, um parto, travessia.

ele à frente, os olhos azuisinhos ganhando a cor da infância, e enquanto percorre os caminhos tantas vezes redesenhados vai dizendo aqui era o rosal da vó, aqui as casinhas dos tios-avós, depois o tio júlio morou aqui até ir pra belo horizonte tratar o câncer, aqui a porta da frente e a primeira sala mas a gente entrava mesmo pela porta lateral da cozinha, aqui a vó elza fazia crochê e via televisão e eu bati a cabeça milhões de vezes porque levantava e esquecia da janela, aqui era a sala de jantar mas ninguém usava, e aqui era o melhor lugar, tinha uma mesa e a gente passava o dia inteiro aqui, aqui a casa de boneca das meninas que depois virou a cozinha de fora da vó, a vida toda atravessando o quintal pra subir com as vasilhas pra mesa, aqui o rio, mas não tinha esses muros, era tudo emendado e a gente ia andando pela beirada até lá na frente, aqui tinha uma mangueira ainda maior que esta, enorme, cortaram, aqui meu bequinho preferido, será que eu passo, ainda passo mas é mais difícil.

o forro apodrecido revela o telhado ancestral. as janelas quebradas mostram o jardim teimoso, cambuquiras, acerolas, jaboticabeira, manga espada, hera, mato. a platibanda tem adornos geométricos no centro e nas extremidades. no alpendre do fundo, cimento queimado amarelo perfeito, não sabem mais fazer assim. um fogão de ágata esquecido. um cofre. teias de aranha, formigas, cupim.

o céu azul . meu amor . memória . monolito

"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."

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