terça-feira, 13 de março de 2007

carta azul

A saudade é minha amiga, meu senhor, ou mais propriamente talvez, minha senhora. Sinto muita saudade, das coisas que não vi, daquelas que não vivi, das outras que perdi. E a saudade pode alimentar o espírito, nos fazendo tristes o suficiente pra querer a felicidade, descontentes o suficiente pra querer a inteireza, insatisfeitos o suficiente pra querer sempre um pouco mais de vida. Mas ela pode, cruel, tornar-se nosso algoz, o guardião da cela, aprisionando nosso coração num tempo e num espaço que não voltam, invariavelmente não voltam mais. E aí, ela corrói devagar como cupins no concreto: quando nos damos conta, a casa ruiu.

Por isso, senhor, não deixemos secar a vindima: na distância, peço que imagines.

Um quarto, a luz entra pelas janelas de folhas abertas ofuscando os olhos de quem entra pela porta. Cobrindo-as, cortinas quase inexistentes, leves como a brisa que as atravessa, num tremidinho de moça virgem. Sobre a cama de madeira, a colcha ainda branca, o barrado solto que acaricia o chão de tábuas largas e escuras que conhecem tantos passos. Sobre a colcha, o mesmo vestido da mulher feminil que ainda sem a roupa que a espera seca com o pano áspero e branco os cabelos, os seios e as ancas que se preparam, e, lentamente, acarinha seu próprio corpo como se fosse o de outra, e antecipa o não-gesto do homem qualquer que daqui a pouco entrará intempestivo pela porta e levará dela toda sua gentileza. Os joelhos e as coxas soltas oscilam e devagar escancaram-se para receber os braços agora caídos que caminham para entre as pernas úmidas e pesam tontos, e as mãos frouxas roçam a pele querendo não encostar, e os olhos se fecham no vento da tarde que entra assim de repente, bagunça os cabelos e as cortinas, inunda o mundo inteiro com seu cheiro misturado de flor e sexo.

É assim que te espero hoje nos meus sonhos, senhor meu, sem aquele vermelho, mas com esta claridade, doce e frágil, uma mulher que espera. Mas o corpo é ainda fácil, ainda despido, ainda teu.

Um comentário:

Anônimo disse...

de todas as cartas desta série "Cartas Ridículas", at´[e agora, esta me parece que foi a mais ponderada; não porque tomaste algum cuidado à mais, mas porque nesta vc se despiu com o coração, e não com o desejo