quinta-feira, 11 de agosto de 2016

carta avoenga

Quando eu nasci, minha mãe queria me dar o nome de Júlia, em homenagem à minha avó paterna. Minha vó não deixou: achava seu nome triste. Então minha mãe, espertinha, alegrou o nome e a avó, virei Juliana.

Minha vó Júlia era de fé. Noviça tirada do convento pra casar contra sua vontade, teve 14 filhos em silêncio, entre eles um padre, duas freiras missionárias, outras duas freiras de clausura carmelitas descalças. Carregava o mundo todo em suas orações e tinha um candeeiro na igreja de Itajubá cujo óleo ela renovava semanalmente, pra que nunca apagasse a fé da sua família. Em louvor a Nossa Senhora, crochetou com linha fina toalhas de banquete para as mulheres suas filhas e noras, milhares e milhares de pontos, infinitos, e a cada um, uma Ave Maria. Quando morreu, minha vó Júlia foi enterrada vestida como religiosa, após permissão enviada diretamente pelo Papa.

Meu avô materno era Luiz, e deu seu nome pra minha irmã e minha filha. Meu vô fazia bolo enfeitado pros filhos quando caíam-lhe os dentes de leite e construía com madeira e lata os brinquedos de presente para o Natal. Quando criança, sua mãe queria dissuadi-lo de jogar futebol, e só deixava o garoto sair pra rua depois de passar algumas horas bordando, coisa de menina. Meu vô aprendeu a fazer barrado de pano de prato, monograma e caminho de mesa, e toda tarde estava na rua jogando bola com os pretos. Dele não herdei os olhos azuis, mas o nome que me define.

Essa madrugada, eu não consegui dormir. Olhei mais uma vez pro presente que ganhei do meu Guimarães, o anel de prata com a libélula das águas doces enfeitada de madre-pérolas do mar profundo e que bate asas! A vida é sopro. Lembrei no meu nome e da minha vó que não conheci e do meu vô que pouco conheci. Acendi uma vela, lavei nossa quartinha d'Oxum, enchi o copo do nosso São Jorge, cantei em silêncio a oração mais linda que meu pai me ensinou.

Minha vó e suas mãos estão em mim.
Meu vô e suas mãos estão em mim.

E eu sou essa bagunça, nós e pontos infinitos bordados de fé, água, tristeza, sopro, paciência e teimosia. Amar está no meu nome. Teço com dor e alegria o pano limpo do meu destino e tenho orgulho dos meus avessos. E canto pra não morrer.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ju... li... ana! Incrível, querida, tuas cartas. Tua existência, singular, sôfrega, chegou-me pelas mãos de uma amigo (Beso) que me presenteou com a compilação 'Transitivos'. Incrível... 3, 4 anos depois, ao encarar os textos me surpreendo, desarmado, com tuas cartas. Sobretudo com a 'carta encarnada'... (ufa!). Lindo também teus movimentos e expressões com a voz... "Ser poeta é difícil demais..." mas, vá! Super beijo de reconhecimento. Chico Flores.

Anônimo disse...

... sim, também a carta encarnada, mas este ufa (corrigindo a tempo) saltou da carta leal...