Tenho dormido mal - sonho em vigília por quase toda a noite e acordo ao meu menor movimento. Sinto calor e frio, não assenta o corpo que faz muitos barulhos e gestos involuntários. Acordo cansada quase sempre no mesmo horário, abro a janela, arrumo a cama, me visto. Quase nunca uso sutiã, bem como sapatos - alegrias. Tomamos café demoradamente juntos na mesa velha no quintal do apartamento e planejamos o dia, só de teimosia. O dia não rende, nem mesmo com muito menos trabalho do que antes do isolamento. Parece que as coisas aleatoriamente demandam um novo vagar e uma nova perspectiva: lavar a louça, ajeitar as almofadas no sofá, encher o filtro, descongelar a carne, picar as cebolas, ler as notícias, saber dos amigos, abrir as cortinas, sentir o vento frio no entardecer alaranjado de Iansã que vem rápido pra comover os olhos.
Arrebol, barras, crepúsculo, entardecer, escurão, lusco-fusco, noitinha, ocaso, poente, pôr, pôr do sol, ruiva, sobretarde, sol das almas, sol-pôr, sol-posto, sonoite - palavras pra colecionar.
É nessa hora que faço o ritual novo nascido na angústia do confinamento: no meu quarto, sozinha, espreguiço, alongo e mexo meu corpo como posso. Enraizo os pés no chão, serpenteio a espinha do cóccix até o pescoço com carinho, massageio a cabeça e os olhos na ponta da cervical, sinto o calor chegar, suspiro. Aqueço a pélvis, abro a base, faço 3 minutos de escalas espirais vibrando e inflando as bochechas, e então começo a cantar. Tem dia que é só um vagar perdido por lugares diferentes, tem dia que é organizado, intenso e claro, às vezes lembro uma canção velha num tom absurdo, outras me faço chorar muito escurecida... Eu digo há tempos que a consciência é um caminho sem volta, mas nunca, em 46 anos, 27 deles cantando, tinha tido essa sensação tão nítida no meu corpo: eu percebo movimentos, ventos e espaços nos escuros dentros de mim. Tem uma coisa muito importante e definitiva acontecendo aqui, ouro sobre azul.
Meu horizonte está maior e menor, os olhos enxergam mal de perto e cada vez pior de longe. O tempo tem outras leis que desconheço mas pressinto. A libido está fora de lugar.
Nada será como antes, amanhã.
Muitos planos à deriva: não consigo ler nem ser otimista; não tenho vontade de compor nem de escutar música; não elaborei projetos; não emagreci. Muitas dúvidas em curso: como vai ser cantar no depois? vou ter força pra me reinventar de novo? vou aprender a fazer pão direito? o que vai sobrar de nós? quantos vão morrer?
Três sensações impregnadas e imperativas: a espera (ou o desespero) da chegada do tsunami; a impotência diante da catástrofe; a raiva dos governos de morte que nos condenam à barbárie.
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