Certamente há um lugar neste corpo onde repousam as palavras soterradas pelas violências que nos recusamos a nomear ou sequer sentir. Palavras abortadas antes de nascer. Palavras desditas. Palavras desimaginadas.
Mas a barbárie se encarrega de exumá-las de dentro dos nossos infernos. Porque o medo como forma de governo tem como artifícios ressuscitar nossas desgraças particulares ao despejar sobre nós a potência paralisante da perversidade institucionalizada, e ao mesmo tempo desviar e esvaziar a nossa libido, que tá ocupada com outra coisa. De modo que vão surgindo pequenas erupções vulcânicas – espinhas, vômitos, diarreias – trazendo o pus de nossas memórias de volta pra superfície enquanto os paus vão amolecendo e as bucetas ressecando. Um a um, e todos juntos, um exército de celibatários psicopatas semi-vivos de olhos vidrados e pele purulenta.
O ano se desabrocha como uma possibilidade suficiente, os encontros viçam, o rosal desejando uma formosura delicada e merecida, e isso enche o meu coração vermelho de alegria, mas eu não sei não ser esta artista que sou, uma mulher política, de modo que o horror cinza e anacrônico daquele vídeo desaba sobre meus olhos como uma tempestade de fumaça podre e eu sou somente a repulsa e o desespero de palavras que sangram como fetos roxos ao primeiro não-arfar. Sonho em vigília com discussões que nunca consegui ter enquanto ando sobre cadáveres na abertura de um espetáculo que não existiu, num mundo que não mais existirá. Acordo sem ter dormido com hematomas, dores musculares e um cansaço de quatrocentas e sessenta e seis encarnações.
Não que eu não soubesse que seria assim. Mas a constatação diária de que é pior, será ainda pior, e pode piorar mais, é que fode o peito.
(só hoje consegui escrever sobre aquele vídeo. Só hoje, dia em que a linda cidade feia aniversaria. Eu sou dela como tantxs outrxs que como eu fizeram do não pertencimento sua maior identidade: sou daqui, sou de ninguém, sou de qualquer lugar. Puta, nômade, atriz. São Paulo não é isso e é isso aí também.)
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