Resta ainda uma camada no meu mapa, abaixo de todas as outras – derme, epiderme, subterrâneo, líquido, inferior, inferior de dentro, depois, escuro e rés do sangue – em que meu corpo finalmente dança intransitivo pois que é desejo em sua pulsão original, densa, desprovida de pejo e suja.
Possivelmente esta é a camada mais próxima da morte.
Possivelmente esta é a camada mais próxima de Deus.
Todos os seus dedos dentro da minha boceta e a pressão única que isso provoca no céu da minha boca. Todos os seus dedos e quase o punho dentro da boceta dela e o estralar dos planetas dentro das minhas retinas. Meus peitos enormes de saudade lactante nas minhas mãos e na sua boca e na boca dela. Os peitos perfeitos delas nas nossas mãos. Minhas mãos milagreiras. Seu pau inteiro dentro da minha boca engasgada e minhas dobras subitamente encharcadas, escorrendo nas minhas coxas. Meu cheiro, seu cheiro, minha pele macia. Minha barriga fria e meus joelhos soltos, e a parte anterior dos seus joelhos, lisa. Seu pau lento na boceta dela e minha língua nele e nela e ela encravando as unhas na minha bunda até sangrar. Minha boceta que não é bonita mas que é flor aberta e cicatriz pulsando, rosa e úmida quando se esfrega na sua cara até tirar o ar até arrancar o chão até afrouxar o sentido até roubar o norte até afogar de gozo até morrer de amor. Seu pau dentro de mim e eu desfalecida. Meu grito. Meu orgasmo na minha mão, egoísta e eficiente, sem você, sem ela. Minha boca na sua boca. Minha palavra silenciada na sua língua.
Vivemos uma tragédia. O presidente do Brasil é um genocida. Meu coração está dilacerado, sinto medo, saudade e tristeza. Taquicárdica, vasculho o fundo do mar em busca de fôlego. E o que encontro é minha carta pornográfica. Dou graças. Eles nunca entenderão.
(Todas as palavras esdrúxulas, Como os sentimentos esdrúxulos, São naturalmente Ridículas.)
terça-feira, 24 de março de 2020
sexta-feira, 13 de março de 2020
cartografia 24
Minha cartografia conheceu uma nova pena: a linha revel.
A sensação mais próxima à que senti hoje foi aquela das vésperas dos meus dois partos prematuros, quando escutava, em feminil desespero, meu corpo tomar decisões próprias. Meus filhos, tão pequenos, por que queriam sair de mim? Por que meu útero queria tirá-los de dentro de si antes da hora? Como imobilizar aqueles movimentos involuntários, as contrações ritmadas, a taquicardia? Durante o parto você se dá conta de modo absoluto e imperativo que o corpo é quem está no comando – pélvis, dilatação, espasmo, rugido, trovoada, movimento de placas tectônicas, big bang. Eles nascem, crescem, você se torna dispensável, a vida segue.
É muito difícil controlar minhas mãos, eu observo seus movimentos involuntários com espanto e algum fascínio. Eu sei o caminho, meus pés seguem o percurso nas calçadas do centro da cidade sob o sol bonito da tarde, e vão desviando ligeiros de um mar de pessoas que não controlam suas mãos, salivas e suores, e é justamente ali, no meio da multidão que freme caótica, como quem assiste a um filme distópico, que eu percebo que há um lugar na minha medula em que reina a desobediência, em todas as medulas da cidade há desgoverno e pulsão, o corpo que escolhe seu próprio movimento, e a dificuldade imensa de controlar as próprias mãos.
A vida segue. A pandemia está nos jornais e nos celulares mas não no corpo da moça do caixa da 25 de março que usa luvas, coça os olhos dentro dos óculos com a mesma luva que alisou o tecido, digitou na máquina registradora vinte e sete reais e oitenta centavos e me deu o troco pra nota de cinquenta verificada em sua autenticidade com a luva encardida de um dia inteiro alisando tecidos e notas, e entre mim e ela um balcão de sessenta centímetros.
E tem a rua. E as milhares de pessoas que moram e ou vivem nelas, pra quem não haverá álcool gel, luvas, máscaras ou a distância segura de um metro, mas tão somente o desgoverno medular e as bactérias e vírus saltitantes de nosso falatório.
Volto pra casa sentindo nas minhas falanges seu risco insurgente enquanto me desespero em olhar praqueles que vão morrer nesse pandemônio coroado.
A sensação mais próxima à que senti hoje foi aquela das vésperas dos meus dois partos prematuros, quando escutava, em feminil desespero, meu corpo tomar decisões próprias. Meus filhos, tão pequenos, por que queriam sair de mim? Por que meu útero queria tirá-los de dentro de si antes da hora? Como imobilizar aqueles movimentos involuntários, as contrações ritmadas, a taquicardia? Durante o parto você se dá conta de modo absoluto e imperativo que o corpo é quem está no comando – pélvis, dilatação, espasmo, rugido, trovoada, movimento de placas tectônicas, big bang. Eles nascem, crescem, você se torna dispensável, a vida segue.
É muito difícil controlar minhas mãos, eu observo seus movimentos involuntários com espanto e algum fascínio. Eu sei o caminho, meus pés seguem o percurso nas calçadas do centro da cidade sob o sol bonito da tarde, e vão desviando ligeiros de um mar de pessoas que não controlam suas mãos, salivas e suores, e é justamente ali, no meio da multidão que freme caótica, como quem assiste a um filme distópico, que eu percebo que há um lugar na minha medula em que reina a desobediência, em todas as medulas da cidade há desgoverno e pulsão, o corpo que escolhe seu próprio movimento, e a dificuldade imensa de controlar as próprias mãos.
A vida segue. A pandemia está nos jornais e nos celulares mas não no corpo da moça do caixa da 25 de março que usa luvas, coça os olhos dentro dos óculos com a mesma luva que alisou o tecido, digitou na máquina registradora vinte e sete reais e oitenta centavos e me deu o troco pra nota de cinquenta verificada em sua autenticidade com a luva encardida de um dia inteiro alisando tecidos e notas, e entre mim e ela um balcão de sessenta centímetros.
E tem a rua. E as milhares de pessoas que moram e ou vivem nelas, pra quem não haverá álcool gel, luvas, máscaras ou a distância segura de um metro, mas tão somente o desgoverno medular e as bactérias e vírus saltitantes de nosso falatório.
Volto pra casa sentindo nas minhas falanges seu risco insurgente enquanto me desespero em olhar praqueles que vão morrer nesse pandemônio coroado.
sábado, 7 de março de 2020
cartografia 23
O Brasil atravessa um período de trevas, e o potencial destruidor de sua política de estado baseada no horror e na violência ameaça, entre outras urgências, o capital simbólico que nos identifica – e portanto a existência de qualquer poesia. Neste momento, minha pesquisa artística tenta criar estratégias para subverter a lógica colonial sistêmica que está impregnada em meu discurso, pensamento e prática artística.
Cito Luiz Antonio Simas para dizer que o ponto de partida dessa nova investigação é o corpo: "... o projeto de normatização deste Brasil de horrores, para que seja bem sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. É o corpo, afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de forma mais contundente o projeto colonizador fundamentado na catequese, no trabalho forçado, na submissão ostensiva da mulher e na preparação dos homens para a virilidade expressa na cultura da curra: o corpo convertido, o corpo escravizado, o corpo feito objeto e o corpo como arma letal.”
Minha primeira atitude é reconhecer meu corpo político: sou mulher, branca, 46 anos, mãe de 2 filhos, casada, bissexual, brasileira, artista independente. Vivo na maior cidade da América do Sul. Sou social e economicamente privilegiada. Pude e posso escolher. Minha ferramenta de trabalho é a minha voz que é meu corpo que é único que muda se transforma e se movimenta. Meu material de trabalho é a palavra que é música que é gesto que é cena – a canção.
As perguntas são: como compreender o corpo como protagonista do pensamento e da atuação política e artística (e não o contrário)? Como construir uma vocalidade que seja viva, gesto e movimento, que liberte e não aprisione, investigativa e não manipuladora? Como lidar com o tempo impresso no meu corpo? Como reabitá-lo e redimensionar suas formas e possibilidades para que não enrijeça? Como horizontalizar minhas relações com plateias, alunxs, artistas, trabalhadorxs em busca de um intercâmbio real e amplo, sem sucumbir à lógica colonial e do capital? Como cantar a canção num momento em que a perda da mediação da palavra ameaça o pacto civilizatório?
(exercício de organização do coração
Cito Luiz Antonio Simas para dizer que o ponto de partida dessa nova investigação é o corpo: "... o projeto de normatização deste Brasil de horrores, para que seja bem sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. É o corpo, afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de forma mais contundente o projeto colonizador fundamentado na catequese, no trabalho forçado, na submissão ostensiva da mulher e na preparação dos homens para a virilidade expressa na cultura da curra: o corpo convertido, o corpo escravizado, o corpo feito objeto e o corpo como arma letal.”
Minha primeira atitude é reconhecer meu corpo político: sou mulher, branca, 46 anos, mãe de 2 filhos, casada, bissexual, brasileira, artista independente. Vivo na maior cidade da América do Sul. Sou social e economicamente privilegiada. Pude e posso escolher. Minha ferramenta de trabalho é a minha voz que é meu corpo que é único que muda se transforma e se movimenta. Meu material de trabalho é a palavra que é música que é gesto que é cena – a canção.
As perguntas são: como compreender o corpo como protagonista do pensamento e da atuação política e artística (e não o contrário)? Como construir uma vocalidade que seja viva, gesto e movimento, que liberte e não aprisione, investigativa e não manipuladora? Como lidar com o tempo impresso no meu corpo? Como reabitá-lo e redimensionar suas formas e possibilidades para que não enrijeça? Como horizontalizar minhas relações com plateias, alunxs, artistas, trabalhadorxs em busca de um intercâmbio real e amplo, sem sucumbir à lógica colonial e do capital? Como cantar a canção num momento em que a perda da mediação da palavra ameaça o pacto civilizatório?
(exercício de organização do coração
de reconhecimento, de não saber
tateio o escuro das minhas dores
bato o joelho na quina da parede
sangro
sigo)
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