quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

na travessia, dia 9

voltamos à loja de tecidos pra comprar o chapéu que tínhamos visto no primeiro dia, ramenzoni xxx pele de coelho cor pino e fita de gorgurão marrom, a caixa com diversas anotações de preços, rabiscos e códigos feitos com as letras trêmulas do seu archimedes que nos recebeu com delicadeza e camisa de linho, dessa vez azulzinha. escolho um corte de algodão com rosas vermelhas e amarelas sobre o fundo branco, antigo. seu archimedes conversou mais um tiquinho conosco, a mesma voz rouca e dicção cuidadosa, perguntou se estávamos de partida, a viagem é longa, eu sei, já fiz muito, mas agora compro tudo em santa catarina, vou de avião, bem melhor, e abençoou minha casa e minha família, deu dois beijos secos nos meus rosto quente e nas bochechas da minha menina linda, abraçou-nos com doçura, meus olhos encheram súbito descontrolado, os teus também, a camisa azul de seu archimedes refletindo nos olhinhos molhados sob a sombra do novo chapéu. primeira despedida.

o caminho de volta foi dar no cemitério da cidade, no alto. todo torto e amontoado, não tem corredores definidos e árvores de sombra, parece que os mortos vão estar todos reunidos de mãos dadas debaixo da terra tamanha a confusão de lápides, tijolos, flores de plástico, cruzes, retratos descoloridos, datas nomes cimento. lá no canto de cima, a chuva do ano passado levou um tanto do terreno barranco abaixo, imagina o susto, e alguns homens refazem o arrimo. nenhum funcionário pra nos dizer onde estaria a lápide da vó e do vô, então fomos tropeçando tentando achar algum sinal. datas nomes cimento. calor. o corpo desistente procura desesperado por um alento. segunda despedida.

asa de ouro foi enterrada depois do almoço, no pé da árvore que fica junto à cerca lateral, folhas de mangueira trançadas por baixo, uns raminhos de carambola por cima, e junto do corpinho um pedaço da pedra preciosa que quebrou dias atrás, a outra parte quero fazer um pingente, cê me ajuda, mãe? depois terra por cima alisada com carinho, uma cruz de gravetinhos e florzinhas apanhadas por ali. lulu me abraça e chora doído, escreveu um poema na primeira página do caderninho da coleção de minerais, o maior que eu já fiz, mãe. lembro o verso decorado do bandeira, olho teus olhos, respiramos juntos. terceira despedida.

o sol se pôs na cachoeira dos padres, uma parede de pedra rasgando a mata. um pouco de medo nos pés. lembro a canção inteira dessa vez, canto alto, peço licença, agradeço. vou ter saudade dessa água. quarta despedida.

hoje teria sido aniversário de 20 anos do meu primeiro casamento, e eu não sinto nada. quinta despedida.

no começo da noite de lua cheia, os cães todos latem muito, uivam forte, uma barulheira. o céu é inteiro. venta na varanda. a vizinha traz mandioca que acabou de tirar do quintal. calango fala, tia jovina do sertão fala, nós rimos. sexta despedida.

fechamos as malas, amanhã partimos cedo. sétima despedida.

recebo teu carinho nos meus cabelos curtos. ama-me? mais. promete? juro. sempre? pra sempre. teamante. teamantena.

"– “... Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia... O Urucuia, perto da barra, também tem belas troas de areia, e ilhas que forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da saudade – jaburu e galinhol e garça-branca, a garçarosada que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher... E o manuelzinho-da-troa, que pisa e se desempenha tão catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...”

Podia ser? Impossivelmente.

Eu não tinha sido capaz de perguntar aqueles ensalmos a Diadorim, de fato só em coisa à-toa se conversou, trivial a respeito de munição e meus armamentos, e avio de guerra. Véspera. As horas é que formam o longe."

Nenhum comentário: