quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

retroverso

Termino 2007 como quem come depressa demais: tudo foi tanto e tão rápido que não estou capaz de entender cada parte, de repartir a misturada em pequenas e coloridas moléculas, diferentes e minúsculas, cada uma alimento específico de um lugarzinho do meu corpo.
Termino o ano com a dor da ferida aberta e latejante, avesso repugnante purulento exposto que precisa renascer pra quem sabe cicatrizar de dentro pra fora, e que volta de novo pra me cuspir na cara aquela única certeza de que não posso perder a vigilância, nunca, não há descanso, sei disso, sei disso, e embora saber não seja suficiente, eu sei e isso precisa ser um começo.
Termino o ano repleta e transbordada de amor verdadeiro: uns frescos, desses de alegria suspensa no ar; uns renovados pela beleza do encontro; alguns em tristeza de plataforma, natureza do caminho que nem sempre é o mais fácil; amores-pra-sempre de infinitude e formosura, reinventados e sempre os mesmos; amores de gentileza; amores de solidão.
Mas termino inteira, com minha alegria simples, meus olhos imensos abertos e molhados, as mãos dedicadas, um pouco de cansaço, algum desencanto talvez, o medo sempre aqui e ali em meu desespero cotidiano.
Termino 2007 de mãos dadas a outras mãos, que é pra não esquecer e pra poder seguir adiante.
Que venha 2008, estamos prontos.
Alvíssaras.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

carta leal

Quando estiveres com outra mulher, meu senhor meu, peço:
que guardes na memória a angulação das ancas, a curva dos quadris, o ponto exato onde terminam as nádegas e iniciam as coxas, o recorte anterior dos joelhos, a profundidade dos tornozelos, a concha da planta e do peito dos pés, a distribuição dos dedos;
que desenhes com as mãos o ventre e o umbigo, a lateral das costelas, a junção delas com o colo e com a espinha, o caminho dos ossos que sustentam os ombros e o pescoço e os vãos preenchidos de pele e suspiro;
que descubras o comprimento dos braços, a fundura das axilas, o ranger silencioso dos cotovelos, as dobras da chegada ao punho, a maciez das mãos, as linhas da palma, a parábola entre os dedos, os nós, o nascimento das unhas e sua forma e cor, o relevo das veias sob a tez fina;
que acompanhes atenciosamente o movimento dos lábios e da língua, das pálpebras, dos cílios, das narinas em inspiração, das maçãs do rosto, do queixo, das orelhas, dos fios de cabelo em torno da testa e diante das têmporas;
que meças a densidade dos seios, o raio de cada auréola, a geografia dos mamilos, a velocidade da contração quando morderes cada um deles com carinho, a redondeza das glândulas e gosto presumível do seu leite;
que determines com precisão a dimensão de cada parte do seu sexo, especialmente do vale entre os pequenos e grandes lábios, do clitóris em todos os seus possíveis estados e do espaço entre a entrada da vagina e as pregas do ânus;
que afiras a extensão e o volume dos pelos e a trama do seu rendado, e ainda as variações de temperatura e umidade da pele e das mucosas de cada vão, de cada membro, de cada buraco.
Peço, meu senhor meu, que saibas de cor tudo o que haverá para saber e até mais, sobretudo a composição dos seus odores e a música escondida no arrepiar dos poros e no encontro do corpo com o ar. Decores e, depois, ainda quente, descreva-me pormenorizadamente: assim poderei sê-la para continuar a ser tua.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

ridiculinha, 29

férias:
arrumar a casa, tirar os monstros de dentro do armário.
nenhum alívio, só o cansaço pesado e triste de todas as encarnações.
e aquela vontade, de novo, infantil, de fechar os olhos.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

idílio

Ele chega assim desavisado ao telefone, e fala comigo como se no programa de entrevistas na televisão, mas diante dos meus olhos vejo as imagens infantis do bruxo da novela, como sou ridícula, e a conversa se distende na contra-mão do costume da repartição, o assunto que começou na morte repentina da secretária e na inaptidão por procedimentos vai viajar para outras paragens, paris, samuel e bertolt, romance do novaiorquino, museu alemão das separações, tudo assim de correnteza, finalizada na promessa de um idílio internético e contemporâneo, como são as relações sem abraço.
Eu envio um link, ele deseja passear em Istambul, eu devolvo um parágrafo, ele retorna com uns versos decorados na infância, eu ofereço meia dúzia de idéias aborrecidas na minha tristeza precoce de quem envelheceu cedo, ele me presenteia com sua alegria ligeira de quem não perdeu o tempo da história e viveu como tinha de ser, eu cumpro a promessa com gentileza, ele me faz as perguntas certas e sempre as mesmas, eu desenterro a memória da menina cheia de vontade e certeza que um dia eu fui, ele me predestina feroz dizendo que sou de aço e que tenho muitos corações.
Ele assina desespoir, e mal sabe ele que esse é, no avesso, meu nome.