sexta-feira, 31 de agosto de 2007

déjà vu

não há tempo pra escrever não há tempo pra dormir não dá tempo de maternar não tem tempo de pensar não tem tempo de fazer direito não tem tempo pra organizar o tempo e a falta de tempo não dá tempo de ligar pros amigos pra casa pro vidraceiro não deu tempo de pagar a conta não há tempo de terminar o que já está começado nem o que já foi mal começado não tem tempo de esvaziar a mesa não dá tempo de ver que o tempo passa rápido e daqui a pouco não vai dar mais tempo mesmo e tudo então vai ficar
desesperadamente
amaldiçoadamente
como sempre foi
atrasado atropelado aflito tenso ruim.
um cansaço de todas as encarnações pesa sobre meus ombros.
ele está impaciente, e tem razão, minhas mãos estão andando pelos pés.
pois que vejo o fantasma daquela inércia passar por perto, do outro lado da rua, ali olhando pra mim, acenando suas mãos feias e gordas, fagocitantes.
rezo, choro, chego a prometer, juro mesmo que dessa vez ele vai dobrar a esquina pra lá e encostar noutra mulherzinha desavisada.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

boda espiritual

Tu não estas comigo em momentos escassos:
No pensamento meu, amor, tu vives nua
- Toda nua, pudica e bela, nos meus braços.

O teu ombro no meu, ávido, se insinua.
Pende a tua cabeça. Eu amacio-a... Afago-a...
Ah, como a minha mão treme... Como ela é tua...

Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa.
O teu corpo crispado alucina. De escorço
O vejo estremecer como uma sombra n'água.

Gemes quase a chorar. Suplicas com esforço.
E para amortecer teu ardente desejo
Estendo longamente a mão pelo teu dorso...

Tua boca sem voz implora em um arquejo.
Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto
A maravilha astral dessa nudez sem pejo...

E te amo como se ama um passarinho morto.

(manuel bandeira, in a cinza das horas, 1917)

carta da ausência

Voltou para casa rápido, mal despediu-se, no fundo achava que talvez ele a estivesse esperando. Abriu a porta ansiosa, atravessou o corredor, e encontrou a cama feita, como deveria ser, o quarto vazio. O frio quarto vazio. Fosse de outro jeito, teria despido-se em silêncio felino, banhado o corpo cansado para tirar o odor do bar, e então perfumada de rosas deitaria nua ao seu lado, escorregando as mãos sob o cobertor azul para sentir o calor da pele, e ao encontrá-lo já pronto, ainda adormecido, invadiria seus sonhos, desfrutaria dele como se de um estranho, diria barbaridades, prostituiria. Mas ele não estava lá. Sua inaptidão para dormir desacompanhada a fez insone, e por imediata conseqüência, rodopiou o pensamento naquilo que ainda carece de ordem, o conforto que não é possível dar aos filhos e a si mesma, a conta do telefone, a construção das novas condições demora um tempo que desconhece e desentende. Chorou miúdo de garganta ardida, teve de novo a vontade infantil, vou fechar os olhos e quando abrir tudo estará resolvido. Tentou diversas vezes, mas o quarto continuava vazio, tudo no mesmo lugar, sobretudo as coisas que insitem em trazer de volta um outro tempo, cujas felicidades viram lembrança e as tristezas horror. Mas ele não estava lá. Tentou um prazer imediato e mediano, enfiou os dedos entre as coxas, mas estava seca, ressecada, sem efeito, ele não estava lá. Teve medo. Chorou de medo. Lembrou-se de um verso preferido: te amo como se ama um passarinho morto. Dormiu vestida de olhos borrados, e no limite do seu desespero encontrou alguma beleza, aquela que reside no gesto delicado e generoso da equilibrista do circo vagabundo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

labirinto

Ansiosos, trabalharam até a madrugada na costura das flores, no adorno das molduras, na composição das luzes, no combinado das cores, ele com suas patas de minotauro, ela com seus olhos de infinitudes, os dois no silêncio dos fundos da casa. Decidiram o nome, a seqüência dos dias e as imagens que estarão no fundo das lentes miúdas, corpos conhecidos, corpos anônimos, e os seus. Na confusão bonita da mesa velha, teceram o futuro, e os frutos do futuro; no rosal da etiqueta, o caminho e a saída, o risco.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

salmo 27

1 O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O Senhor é a força da minha vida; de quem me recearei?
2 Quando os malvados investiram contra mim, para comerem as minhas carnes, eles, meus adversários e meus inimigos, tropeçaram e caíram.
3 Ainda que um exército se acampe contra mim, o meu coração não temerá; ainda que a guerra se levante contra mim, conservarei a minha confiança.
4 Uma coisa pedi ao Senhor, e a buscarei: que possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a formosura do Senhor, e inquirir no seu templo.
5 Pois no dia da adversidade me esconderá no seu pavilhão; no recôndito do seu tabernáculo me esconderá; sobre uma rocha me elevará.
6 E agora será exaltada a minha cabeça acima dos meus inimigos que estão ao redor de mim; e no seu tabernáculo oferecerei sacrifícios de júbilo; cantarei, sim, cantarei louvores ao Senhor.
7 Ouve, ó Senhor, a minha voz quando clamo; compadece-te de mim e responde-me.
8 Quando disseste: Buscai o meu rosto; o meu coração te disse a ti: O teu rosto, Senhor, buscarei.
9 Não escondas de mim o teu rosto, não rejeites com ira o teu servo, tu que tens sido a minha ajuda. Não me enjeites nem me desampares, ó Deus da minha salvação.
10 Se meu pai e minha mãe me abandonarem, então o Senhor me acolherá.
11 Ensina-me, ó Senhor, o teu caminho, e guia-me por uma vereda plana, por causa dos que me espreitam.
12 Não me entregues à vontade dos meus adversários; pois contra mim se levantaram falsas testemunhas e os que respiram violência.
13 Creio que hei de ver a bondade do Senhor na terra dos viventes.
14 Espera tu pelo Senhor; anima-te, e fortalece o teu coração; espera, pois, pelo Senhor.

domingo, 12 de agosto de 2007

retroz adonis

Veio envolto em rosas, com suas cinco gavetas divididas em quinze compartimentos cada uma, de madeira encerada pelo tempo e gasta pelo uso de mãos que desconheço mas que faço minhas. Nos números precisos, escolhidos, as surpresas que, uma a uma, devolveram ao meu rosto o sorriso conhecido, aquele que tinha nas festas de quando criança: as três plaquinhas de ferro esmaltado, as nove rosas aveludadas, o anel de prata com o santo guerreiro, o cartãozinho florido, os sapatos de princesa, a outra rosa no vidro, os dois pássaros iluminados, uns versos pornográficos, as outras rosas de plástico, o papel de seda. Nas horas que abrem o novo ano, tudo volta a ter a certeza que eu tinha no sorriso que se me escapava orvalhado nas festas de quando criança. Visto o amuleto no anelar da mão esquerda, calço os sapatos, beijo tua boca como fosse a primeira e a última vez, sirvo-te com a calma e a urgência que são nossas e pra sempre serão, pronuncio as palavras sagradas enredada nos teus braços, adormeço protegida pelo teu calor como dormiria uma menina, sem medo do escuro, do silêncio ou da solidão. O dia amanhece perigoso como todos os outros, mas então me lembro quase e ainda assustada que tenho já uma nova memória e meu corpo conhece outro movimento, e este é o maior dos presentes.

A nossa flor segue com viço, perfume e cor: a rosa nas patas do minotauro, no labirinto, no meio do dia, no meio do mundo, no risco e na metrópole, na travessia.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

vésperas

Às vésperas de um novo ano sempre é assim, e eu que já devia me acostumar, ainda sofro sempre, insone: a filha fica doente, e estamos já no terceiro dia de hospital, a conta bancária de cabeça pra baixo, o trabalho sem nem mais ter os pés, tudo, tudo numa confusão tão desparatada, um vaudeville sem graça nenhuma.

Às vésperas sofro muito e choro à toa, sinto-me assim, miudinha.

Ridícula, eu sei, e pra acalmar vejo meu rosal ensolarado, os filhos lindos, meu amor todo meu que cuida de mim (infinitudes que desconhecia, benção por mim sonhada, amém), o risco que fica pronto e anuncia o seu, o nosso, devir.

É o medo, eu sei, superlativo, o tempo que passa depressa. E esse nó na garganta, um terror de não dar certo.

Calma, Juliana, respira: é só um dia depois do outro.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

do real real

quinze anos. duas da madrugada, quase arrancou-lhe a cabeça. quarenta pontos. sem poder lavar-se até o exame de corpo-delito, só às dezoito horas. paciência, minha senhora. coquetel de remédios. a mãe de 43 anos já é avó e está grávida do terceiro. uma carona com o conhecido do conhecido. tão bonita, alta, magra, negra, eu a conheci na repartição. linda. que mundo é esse, meu deus, e essa sensação de estar tão perto, e tão sem ter o que fazer.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

o risco é...

... não ter mais tempo pra escrever;
... estar na repartição e simplesmente não conseguir;
... tomar vinho no copo de plástico no meio dos escombros, 12 mãos sorridentes;
... acordar às 5h da madrugada com dor de estômago;
... sonhar com flores de plástico, luminárias e rosas;
... construir, urgentemente, um outro tempo, um outro lugar.
em breve, na metrópole.