quinta-feira, 13 de agosto de 2020

cartografia 34

É como a membrana que separa a gema da clara, aquela pele transparente que deixa gosto. A gente não vê, mas sabe que está lá. Pra tirar precisa beliscar o fugidio macio do núcleo da célula – percebe, nunca é de primeira – insistir com delicada violência no invisível, e misteriosamente depois de algumas tentativas, a gema, antes perfeita porque contida, apartável e protegida, se esvai descontrolada e se mistura à clara e ao ar do tempo, e a vida prometida no ovo definitivamente se liberta em não vida, em matéria fundida que não é nada e é tudo e além.

Nos dias de enxaqueca que antecedem a menstruação eu imagino essa prática culinária ancestral enquanto solto as mandíbulas e derrubo a língua do palato, o que tem um duplo efeito: relaxa o assoalho pélvico e a vagina (posso às vezes ouvir o barulho dos pequenos lábios se afastando, arejados) ao tempo que abre caminhos pra que dor que pressiona as têmporas e testa – sempre de um lado mais que do outro – possa escorrer desimpedida pelos espaços escuros do meu crânio, face, maxilares, nuca, cervical, ombros até as escápulas. 

Leio que uma âncora não é um balão, exige planejamento porque é peso preenchido de passado, e que, portanto, não se faz uma âncora eficiente de improviso. Leio também que os astros dizem de mim que tendo a ser agarrada ao meu redemoinho emocional e infantil, e que preciso de trabalho duro e perseverante pra entender a passagem do tempo e então alcançar no mundo, fora do meu conforto, a maturidade liberta e plena da minha existência.

Duas mulheres que amo me ensinam sobre mim.
Todas as mulheres que beliscaram gemas de ovos me ensinam sobre mim.
Minha menstruação cansada e sua enxaqueca me ensinam sobre mim. 

Que eu sou âncora que se sonha balão. Gema de ovo aninhada desejando o além. Enxaqueca em cega travessia.