na travessia, o diário

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

mococa, sp - governador valadares, mg

(quando quis ler o grande sertão, tentei tantas vezes e não consegui, então um professor, davi, disse pra ler de uma só vez umas 50 páginas, sem parar, sem entender, sem dicionário, sem resistir. talvez tenha sido este o melhor conselho da minha vida. esta é a sétima vez que volto a ele, e cada vez dum jeito diferente, misturado com os todos cantos do meu peito sanguíneo: assim a viagem, uma talagada duma vez, pra despertar desafogada no meio do redemunho; assim a vida, vestida de carmim; assim o amor que está em meu nome)

777 quilômetros, 12 horas. carro gente caminhão feiúra estrada gente carro buraco gente miséria caminhão carro carro. o céu dum azul sólido. a terra aberta em feridas. o verde que não desiste. uns passarinhos amarelos lindos de pequenos, meu pai ia saber, certeza.

de repente, o trem de ferro que carrega ferro infinito, e então sei que cheguei às portas das gerais.

o corpo aos poucos cede ao calor que parece apertá-lo pra dentro de si, já não resiste mais, procura algum conforto numa memória que não sei. quase não venta. encurto as saias, tiro as mangas e aceito o úmido que escorre entre meus seios.

na cama dos outros, nossa pele arde, nomeia e lembra: rosal em botão.

"Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?"


quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

governador valadares, mg - mantena, mg

quase três horas, 135 quilômetros, e no fim da tarde a terra boa nos recebeu azul, azul que ainda permanece acesso nos olhos do meu amor.

pedra. terra batida e poeira. asfalto ruim. casas com mulheres nas janelas, nos alpendres, nas calçadas. bares de homens inchados. calor.

depois de uma volta na cidade já irreconhecível, chegamos à casa da tia, um oásis de plantas, árvores, pássaros, madeira velha, panelas de ferro, bacias e toda sorte de coleções, enfeitadas com toalhinhas de crochê e com um vento que passeia só aqui.

chegamos.

aqui ficaremos até o corpo entender o calor e refazer as memórias mais profundas. aqui estamos pra presenciar e aprender sobre o amor, a doença, a cura, o tempo, a fartura, a miséria, o silêncio.

o último dente de leite da macaca caiu, e minha ensolarada dos dias desabrocha na flor mais formosa. os olhos de floresta do meu filho estão longe, mas ouço sua voz e sei que tudo está certo.

no último dia do ano não rezei porque minha certeza é tão vasta que tudo em mim é amor, oração e agradecimento.

"A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia."


quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

no primeiro dia do ano, o amor e a casa.

ela está doente, câncer, metástase. mais de 60. tem tanta força, tanta, que quando passa os passarinhos suspendem o ar. seus movimentos são ligeiros, passos e olhos miúdos rápidos, língua ferina, humor colérico. ela tem um sorriso imenso. o amor dos filhos e netos que não teve está costurado nas incontáveis toalhinhas espalhadas pela casa, nas coisas velhas expostas pelas prateleiras, nas relíquias escondidas nos baús. ela é pequena, não sente nenhuma dor, e seu nome jovina ganhou aqui o sobrenome do sertão. ela é.

ele é rústico; fala um idioma pessoal; tem um sistema próprio; meio bicho, meio homem, tem 46 mas parece menos; alfabetizado; cheira a terra e cerveja. não suporta o silêncio, deve ser alto demais pra seus ouvidos de poucos pensamentos. ele faz tudo que ela quer sem se saber mandado: água o jardim, enche o filtro, pendura as roupas no varal, lava as panelas de ferro, passa o café, varre o terreiro, ri muito, e à noite, encharcado, dorme na varanda, com os pés-cascos para cima. ele é forte, e a cidade toda o conhece, o calango.

quando soube da doença, ele chorou igual criança e ela deu-lhe uma bronca, que eu ainda não morri. na noite de ontem, ele a tirou pra dançar, sorridentes e cúmplices. trepam, menos às vésperas da quimio porque diminui as plaquetas. ele lembra o horário dos remédios e de beber água sempre, cultiva mudas pro jardim da casa nova que não fosse a doença já estaria pronta. ela o levou pra passear de avião, escada rolante e elevador, estudou com ele pra prova de motorista, dá presentes, administra o dinheiro e orienta cada passo. Cuidam tanto um do outro, tanto, de um modo intumescido e brutale (como ela diz), e ainda assim, tanto. meus olhos derramam de admirar: o amor é tão imenso quanto improvável.


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no fim da tarde, a casa nos recebeu.

corredor estreito coberto de heras, um parto, travessia.

ele à frente, os olhos azuisinhos ganhando a cor da infância, e enquanto percorre os caminhos tantas vezes redesenhados vai dizendo aqui era o rosal da vó, aqui as casinhas dos tios-avós, depois o tio júlio morou aqui até ir pra belo horizonte tratar o câncer, aqui a porta da frente e a primeira sala mas a gente entrava mesmo pela porta lateral da cozinha, aqui a vó elza fazia crochê e via televisão e eu bati a cabeça milhões de vezes porque levantava e esquecia da janela, aqui era a sala de jantar mas ninguém usava, e aqui era o melhor lugar, tinha uma mesa e a gente passava o dia inteiro aqui, aqui a casa de boneca das meninas que depois virou a cozinha de fora da vó, a vida toda atravessando o quintal pra subir com as vasilhas pra mesa, aqui o rio, mas não tinha esses muros, era tudo emendado e a gente ia andando pela beirada até lá na frente, aqui tinha uma mangueira ainda maior que esta, enorme, cortaram, aqui meu bequinho preferido, será que eu passo, ainda passo mas é mais difícil.

o forro apodrecido revela o telhado ancestral. as janelas quebradas mostram o jardim teimoso, cambuquiras, acerolas, jaboticabeira, manga espada, hera, mato. a platibanda tem adornos geométricos no centro e nas extremidades. no alpendre do fundo, cimento queimado amarelo perfeito, não sabem mais fazer assim. um fogão de ágata esquecido. um cofre. teias de aranha, formigas, cupim.

o céu azul . meu amor . memória . monolito

"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."


sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

os armários de madeira, metros e metros de prateleiras, vitrines e bancas espalhados na loja grande, alta e arejada abrigam toda sorte de tecidos. a enchente do ano passado estragou muita coisa, mais de duzentos mil de mercadoria perdida. alguns cortes atingidos pela água barrenta são vendidos a seis reais o metro, com o aviso cuidadoso da vendedora que mostra a mancha e me pergunta, vai querer assim mesmo? quero, gosto de tecido com história e a blusa de algodão florido carregará pra sempre a água de mantena em sua trama. loja de tecido me enternece tanto, guarda um silêncio antigo. os olhos velhos de seu archimedes brilham quando pergunto se ele tem linho - mostra a camisa cinza clara que usa sobre os ombros franzinos, a senhora conhece, não é, é caro porque não tem nada igual a isto, e quando eu cismo com coisa boa, pode custar cem, duzentos, trezentos, não tem jeito, eu compro mesmo, só tem uma fábrica hoje, acabou tudo. a voz é rouca e a fala pausada pra garantir o perfeito entendimento. peço pra ver aquele lá em cima, então ele sobe as escadas, trepa ágil nas estantes, suas mãos artríticas deslizam pelas peças, eu sei que mesmo no escuro de dentro da morte ele saberia reconhecer e nomear cada urdidura com essas mãos velhas. a blusa de linho cinza pousará no meu corpo com o carinho das mãos de seu archimedes.


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eu gosto quando seu beijo e sua língua enfraquecem meus joelhos e enxarcam minha calcinha.
eu gosto quando me surpreende enfiando suas patas de minotauro entre as minhas pernas.
eu gosto quando seu pau fica duro, descontrolado, e me ataca debaixo da bica d'água, ao lado da cerca viva, e qualquer passante mais atento perceberia que estamos trepando enquanto as pessoas conversam na varanda.
eu gosto de você e da sua fome.
e mais ainda quando me chama de galega.

"Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar mel de flor. E me embebia – o que estava me ensinando a gostar da minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. Altas borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante de imagem, e já aprontada para a noite, em camisola fina de ló. Otacília indo por meu braço às festas da cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de molmol. Ao tanto, deusdadamente ele discorresse. De meu juízo eu perdi o que tinha sido o começo da nossa discussão, agora só ficava ouvinte, descambava numa sonhice. Com o coração que batia ligeiro como o de um passarinho pombo. Mas me lembro que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez – alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva. No tempo, não apareci no meio daquilo. Assim foi que foi."


sábado, 3 de janeiro de 2015

tem dia que é tão grande que a escritura estraga.

manhã de feira, o gesto ancestral de apanhar tudo fresco, cozinhar dedicado pro povo todo, fartar, e depois o cheiro de café, que eu podia fazer só isso pro resto da vida, valei-me.

na tarde ensolarada, estrada, pedra e cachoeira, correr das águas que tudo levam, tudo curam, tudo limpam, peço licença, ofereço o corpo cantando minha oração e agradeço o meu lugar.

o que conforta é que a poesia resiste: toda a delicadeza mora nos moços que levam na garupa de suas bicicletas, de ladinho, suas namoradas em vestido de algodão.

"Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo do sol e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam, às imensidões, por sobre... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele..."


domingo, 4 de janeiro de 2015

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pela manhã, visitamos a casa do filho da solange, amiga de infância das tias, vizinha da casa da vó elza. solange com 18 anos já tinha dois filhos, depois morou nos quatro cantos do mundo, casou com um americano, e agora com mais de 50 voltou a mantena; passa o dia cuidando da mãe com alzheimer e construindo sua vida no second life. seu filho geraldo, o gezinho, é colecionador e comerciante de minerais, e fomos à sua casa pra conhecer seu tesouro. estantes de fórmica de madeira expõem com cuidado mais de 3 mil minerais e fósseis, incríveis, que o gezinho vai dedicadamente apresentando, nome científico, origem, grau de dureza, preciosidade, valor, tipo de minério e outras curiosidades. ao saber do gosto da minha luiza pelo assunto, abre as gavetas e presenteia a macaca, topázio, dioptásio, cianita, muscovita, rubi, esmeralda, aghata, granada, fóssil de escargot que veio da frança, labradorita de madagascar, e então configura-se o início da coleção de minerais da luiza, com 20 pedras e 2 fósseis, e ela, siderada, começa a registrar em seu caderninho o nome e o desenho de cada pedra, pra não esquecer. gezinho é muito tranquilo, sorridente, tímido, mineiro. depois leva pra conhecer a casa, quartos, banheiros, cozinha, quintal e a escada já pronta pra construção do escritório sobre a laje que vai ter vista pra monumental pedra do emiliano. na garagem, mostra um tronco de árvore fossilizado, e perguntamos, quanto tempo demora pra ficar assim? bom, eu sou criacionista, mas se eu fosse evolucionista, diria que demora uns 300 milhões de anos pra fossilizar.

domingo é o dia do senhor.

"Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado..."


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

no sétimo dia, começo a sentir saudade.

saudade do meu filho de olhos de floresta. da minha casa, meu chuveiro, meu quintal e a mesa de madeira imensa, meu armário de louças. saudade de dormir e trepar na minha cama. memória dos seus olhos, da sua risada solta, dos cabelos enroscados nos meus dedos. saudade do meu horizonte de dois lados e do café, todos eles. saudade de cantar, dos meus amigos, do risco, trabalho em alegria. saudade sobretudo do algum silêncio.

dias atrás, no almoço, um anu branco bicou um filhote de rolinha já emplumado que caiu do ninho ao pé da caramboleira. minha macaca e o calango acudiram o passarinho, a asa muito machucada, limparam a ferida e colocaram protegida numa gaiola, com água e quirera, até se recuperar. luiza deu nome: asa de ouro. hoje soltaram no terreiro que é pro bichinho não acostumar na gaiola e pra ver se já consegue bater a asinha. asa de ouro andou, ciscou, comeu, até deu uns pulinhos, mas no entanto ainda não voltou a voar.

"Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o nome dele – foi como dissesse notícia do que em terras longes se passava. Era um nome, ver o quê. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da razão desse encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de algum crime arrependido, fosse, fuga de alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mas havendo o ele querer que só eu soubesse, e que só eu esse nome verdadeiro pronunciasse. Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela-alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão."


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

o dia amanheceu ao meu olhar igual aos demais, azul inteiro vastidão calor monolito, mas calango anunciou, hoje chove. transcorreu o dia quase parado, eu querendo murchar, luiza indisposta, e quando foi o fim da tarde, ventou diferente, as nuvens escureceram rápido e choveu, amém.

a vida muda inteira com a chuva.

nesses dias crus do sertão, o tempo é mais lento e farto, minha pele vigora ao sol e água limpa, ao tempo que envelheço. envelhecemos, e eu acho isso tão bonito. meus olhos imensos querem guardar o cheiro abençoado da terra molhada e todo o mundo de delicadezas e misérias que vasculho em cada buraco desse lugar. teus olhos azuis estão diamantinos. nosso amor cresce e predestina, rosal formoso.

a vida muda inteira a toda hora, aqui e onde quer que eu esteja, a despeito do meu coração riobaldiano que quer o feio apartado do bonito e todos os pastos demarcados. eita. mas aprendo, envelheço e aprendo, miúda, devota e teimosa.

"Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece – só rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho pediu. Por quê? Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois."


quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

voltamos à loja de tecidos pra comprar o chapéu que tínhamos visto no primeiro dia, ramenzoni xxx pele de coelho cor pino e fita de gorgurão marrom, a caixa com diversas anotações de preços, rabiscos e códigos feitos com as letras trêmulas do seu archimedes que nos recebeu com delicadeza e camisa de linho, dessa vez azulzinha. escolho um corte de algodão com rosas vermelhas e amarelas sobre o fundo branco, antigo. seu archimedes conversou mais um tiquinho conosco, a mesma voz rouca e dicção cuidadosa, perguntou se estávamos de partida, a viagem é longa, eu sei, já fiz muito, mas agora compro tudo em santa catarina, vou de avião, bem melhor, e abençoou minha casa e minha família, deu dois beijos secos nos meus rosto quente e nas bochechas da minha menina linda, abraçou-nos com doçura, meus olhos encheram súbito descontrolado, os teus também, a camisa azul de seu archimedes refletindo nos olhinhos molhados sob a sombra do novo chapéu. primeira despedida.

o caminho de volta foi dar no cemitério da cidade, no alto. todo torto e amontoado, não tem corredores definidos e árvores de sombra, parece que os mortos vão estar todos reunidos de mãos dadas debaixo da terra tamanha a confusão de lápides, tijolos, flores de plástico, cruzes, retratos descoloridos, datas nomes cimento. lá no canto de cima, a chuva do ano passado levou um tanto do terreno barranco abaixo, imagina o susto, e alguns homens refazem o arrimo. nenhum funcionário pra nos dizer onde estaria a lápide da vó e do vô, então fomos tropeçando tentando achar algum sinal. datas nomes cimento. calor. o corpo desistente procura desesperado por um alento. segunda despedida.

asa de ouro foi enterrada depois do almoço, no pé da árvore que fica junto à cerca lateral, folhas de mangueira trançadas por baixo, uns raminhos de carambola por cima, e junto do corpinho um pedaço da pedra preciosa que quebrou dias atrás, a outra parte quero fazer um pingente, cê me ajuda, mãe? depois terra por cima alisada com carinho, uma cruz de gravetinhos e florzinhas apanhadas por ali. lulu me abraça e chora doído, escreveu um poema na primeira página do caderninho da coleção de minerais, o maior que eu já fiz, mãe. lembro o verso decorado do bandeira, olho teus olhos, respiramos juntos. terceira despedida.

o sol se pôs na cachoeira dos padres, uma parede de pedra rasgando a mata. um pouco de medo nos pés. lembro a canção inteira dessa vez, canto alto, peço licença, agradeço. vou ter saudade dessa água. quarta despedida.

hoje teria sido aniversário de 20 anos do meu primeiro casamento, e eu não sinto nada. quinta despedida.

no começo da noite de lua cheia, os cães todos latem muito, uivam forte, uma barulheira. o céu é inteiro. venta na varanda. a vizinha traz mandioca que acabou de tirar do quintal. calango fala, tia jovina do sertão fala, nós rimos. sexta despedida.

fechamos as malas, amanhã partimos cedo. sétima despedida.

recebo teu carinho nos meus cabelos curtos. ama-me? mais. promete? juro. sempre? pra sempre. teamante. teamantena.

"– “... Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia... O Urucuia, perto da barra, também tem belas troas de areia, e ilhas que forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os
pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da saudade – jaburu e galinhol e garça-branca, a garçarosada que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher... E o manuelzinho-da-troa, que pisa e se desempenha tão catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...”

Podia ser? Impossivelmente.

Eu não tinha sido capaz de perguntar aqueles ensalmos a Diadorim, de fato só em coisa à-toa se conversou, trivial a respeito de munição e meus armamentos, e avio de guerra. Véspera. As horas é que formam o longe."


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

mantena, mg - são paulo, sp

1034 quilômetros, 17 horas de viagem.

depois de passar por belo horizonte, entardece. viagem de ventania, nem lembra se olhou pra trás ao primeiro passo aço aço. meus olhos enchem, escorrem, explico pra luiza que esta é minha música preferida, e que este disco me acompanhou nos 27 dias de hospital que antecederam seu nascimento. também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem. meu coração transborda, as montanhas de minas gerais ao meu lado. em meio a tantos gases lacrimogênios ficam calmos calmos. olho nos seus olhos tão azuis, cada coisa no seu lugar. e lá se vai mais um dia. quero cegar as retinas no sol desta tarde e afogar meus ouvidos nesta voz. de tudo se faz canção e o coração na curva de um rio rio rio. respiramos juntos, gostamos o mesmo gosto, nossa memória compartilhada, nosso amor muito e no real diverso, que aprendi o presente que ganhei: tamanho é o tamanho da alma. esquina mais de um milhão, quero ver então a gente gente gente.

e lá se vai mais um dia.

"E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia."

Um comentário:

hebe disse...

Juliana, juliana, ju... Nada a dizer, nada. Coração e olhos a derreter diante de tanta beleza, de tanto mais. Meu amor por você permanece maior.